Adrede
“De Propósito, de caso pensado; intencionalmente; previamente.”
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
“Ooohhhh!”
A gigantesca nave, posicionada na Candelária, expandia seu tamanho e
cobria a Presidente Vargas num diâmetro de círculo bastante irregular, emitindo
estribilhos sonoros e vários feixes de luz sobre a multidão na Central do Brasil agora
silenciosa.
Se se tratasse de uma estratégia à destruição humana, o que importava, para
a economia de meios, era o que sucedera irrompendo na Presidente Vargas a massa
humana voltando-se contra si mesma e, a um só tempo, arrebentando bancos,
prédios públicos, privados, o que mais encontrasse nas margens da larga avenida.
Indispensável usar os olhos e ouvidos de Minervina, a professora primária
moradora de Benjamin do Monte, à espera do trem:
“Se eu tivesse sido Profeta, não acharia estranho essa procissão.”
Minervina convivia com singularidades com uma certa regularidade.
Jeibysson, seu filho, – a quem aguardava na Central – ainda bem pequeno, um ano
e meio, imitava o relincho vindo da Praça dos Cavalinhos, na Tijuca, onde moraram,
escondido atrás da cortina, trepado no alto da grade da janela do quarto. Ouvir um
Profeta inviável, em meio ao caos provocado pelo inusitado de uma aparição alienígena, portanto, não era problema.
“Já não conheço mais o meu povo. Surpresa boa.”
As palavras de Jeremias para o desespero assaltando a cidade, enquanto
Jeibysson, ao invés de encontrar-se com a mãe, afastou-se, virou na Irineu Marinho,
queria matar a curiosidade e entrar no prédio de O Globo onde costumava deixar,
na portaria, quentinha, salgadinhos e sanduíches de pernil do emprego no botequim da esquina arranjado por Minervina a fim de tirá-lo da rua, da bola o dia
inteiro, da ociosidade sem culpa nem projeto. Pulou a roleta, subiu a escada, foi
ao terceiro andar na editoria de arte, para onde sempre havia entrega, um mausoléu de geometria fria, guichês de vidro delimitando compartimentos calculados,
fantasmagóricos, como fogo-fátuo. O Globo mudara-se, ficara longe do botequim.
Demitido, Jeibysson não conhecera sua portaria nova.
Na rua, era esperado por Jeremias, a quem conhecia da rotina do trem e que,
instado por Minervina a ajudar a encontrar o filho, o viu justo no momento em que
dobrava a esquina da rua de Santana.
“Torno a trazer isso à mente, portanto, tenho esperança.”
“Qual a boa?” – Jeibysson já percebera um meio de comunicar-se.
“Lembro bem. A Rio 92 estava pra começar, voltava de Saquarema, parou
tudo na Ponte porque passava lá embaixo, no Rio, a comitiva do Bush, que acabava
de chegar. Dez da noite, mais ou menos. Sem previsão, até tudo normalizar pela
segurança. Pedi ao motorista que me abrisse a porta, voltei pra Niterói pra pegar
a barca pro Rio andando encostado na mureta da Ponte, a Baía de Guanabara, à
minha esquerda, um precipício e ameaça, e, de repente, o tráfego começa a fluir,
cada carro que passava estourava o farol ameaçando menos a minha cara do que o
deslocamento de ar dos ônibus, sobretudo da 1001. Não caí e a barca me trouxe, e
agora torno a trazer isso à mente pela esperança que um dia este prédio me nutriu.”
Logo encarava o mausoléu, com a identidade perdida no tempo, que fez
Jeibysson notar a cronologia. A Rio 92, conferência mundial sobre o clima que
conhecera no livro didático, fazia parte da experiência do artesão sexagenário, ágil,
adversário para qualquer alienígena.
Jeremias leu a curiosidade de Jeibysson de que era o velho maluco que volta
e meia aparecia em memes.
“O papo do maluco com o que você me associou, me olhando, me perguntando qual era a boa, estava em que na Ponte eu não tinha outra alternativa que
tentar. Vou melhorar: a medida da minha loucura não foi pedir ao motorista que
me deixasse sair do ônibus para andar pela ponte àquela altura, tampouco posso
estar maluco, agora que você me vê direto com os olhos. Estaria, de fato, se contasse
essa história aleatoriamente, sem relação com o fato de encontrar-me aqui, diante
deste prédio abandonado, como abandonada parece toda a cidade, pelo desfile que
fazem ali, na Presidente Vargas, sem Carnaval, sem fantasia, em silêncio. Voltava de
Saquarema com um conjunto de desenhos que pretendia levar à editoria de arte de
O Globo. Ansioso, chegar rápido, tomar um banho, evitar a comunidade, esticar a
esteira e dormir o sono dos justos para a manhã seguinte e redenção.
Uma pausa.
“Queda, expiação, redenção. O mito do herói, que você deve ter ouvido da
sua mãe. Minervina é muito límpida, fácil à observação, professora que organiza
muito bem as ideias alheias. Portanto, deve ter-lhe contado muitas histórias. Minha
queda foi de pouca altura, trabalhava como arte-finalista na Manchete, ali no Russel
e elevação, se tanto, vinha de trabalhar no décimo andar numa obra de Niemeyer.
Não interessa a razão. Queria voltar a trabalhar na imprensa, retornar ao ponto de
partida, ao trazer pra este prédio todos os desenhos que havia feito em Saquarema.
Passou. Minha preocupação agora é sobreviver, sobreviver, sobretudo, a esta guerra
de mundos. E, pra encerrar, se é que estejamos à beira do fim do mundo, lembre-se,
sempre, Jeibysson, de Jeremias, o Outro: ‘quero trazer à memória somente o que me
pode dar esperança’”.
É aí que entra Aldeído Caneta. Jornalista, poeta, escritor e modelo, Caneta
conhecera a decadência bem cedo e, ao contrário de Jeremias, que não conseguira
o emprego no jornal, manobrava os carros no estacionamento e residia na cobertura num anexo estreito à casa das máquinas, com boa ventilação, mas barulhento.
Assim, o salário de Caneta acabava sendo duplo, pelo acréscimo do de vigia. E foi
justo no terraço do prédio que viu com toda nitidez a nave na Presidente Vargas.
Os alienígenas vindo – pensou – fizeram-no tomar-se de um entusiasmo há muito
ausente. Lembrou-se há tempos da falta de educação de um colega: muitos carros
para despachar, a entrada e saída congestionada, o sujeito não apenas deixa o
carro na entrada, sai, abre um envelope, lê rapidamente, amassa e joga fora. Não
tivesse receio de perder o emprego, teria confrontado o comportamento do colega,
editor da casa. Pegou o papel, endereçado diretamente ao colega, e guardou pra ler
à noite no anexo. Não havia internet. O e-mail ainda consistia em escrever cartas,
geralmente à mão. E naquela estava escrito o que agora entregava para Minervina,
que conseguira falar ao celular com o filho descobrindo onde ele estava, ao descer
do prédio.
“O jornal saiu daqui, mas eu continuei. A senhora gosta de ler? Professora?
Então, irá adorar o que tenho no bolso. Leia.”
O Dia do Contato
As paredes de tijolos brilhavam cobertas por espessa luz azulada. Drexter
Found havia ajustado os spots que colocara com a autorização do NSDC e que tanta
celeuma causara aos céticos por considerá-lo uma fraude, charlatanismo barato.
Estavam todos presentes, John Sfinkbair e SuleTedwaquer, os que primeiro receberam
os sinais, olhavam os caracteres na tela com a ansiedade de quem não pode piorar
a espera pelos captores de tungstênio localizados na garganta do Grand Canion.
Foi quando, já desgastados pela expectativa, começaram a ouvir as evidências, as
primeiras naves na atmosfera fazendo tremer as barrouquilhas de cerâmica que
se ligavam aos computadores do NSDA. Tremeram junto. Era um momento muito
especial. O espírito americano provava ao mundo que nele a humanidade podia
não apenas confiar, mas devia ter certeza da proteção efetiva para o que fosse preciso
fosse, na aliança amistosa que se abria nesta nova página da humanidade, no combate guerreiro contra uma eventual invasão alienígena. Um imensa roda de sombra,
espessa, seguida por intensa mancha azulada, que se espalhava como um cobertor
estendido devagar sobre os edifícios; de fato, as barrouquilhas cerâmicas acionaram
logo as câmeras digitais. Eis a Nave Mãe, um gigantesco monolito cinza, de miolo
bruxuleante, azul, muito azul, de onde emanava a luz que banhava aquele crepúsculo da capital. Àquela altura, a avenida estava toda tomada e, na abertura da goiva
cilíndrica da base da Nave Mãe por onde uma rampa era esticada e espargia uma
lente líquida transparente, Rico Hernandez, periodista mexicano e correspondente
da Prensa Latina em Washington, anotou, acrescentando ao conhecido ditado: “não
estamos mais apenas longe de Deus e tão perto do Estado Unidos. O Diabo agora foi
reforçado...”
A carta constituía um documento longo, razão pela qual o editor só lera a
primeira página, bobagem, amassara e a jogara fora.
Minervina prossegue, alcança o trecho da próxima aparição dos alienígenas, aqui nomeados “Lunares Setentrionais”. John Sfinkbair e Sule Tedwaquer são
novamente citados, fazem parte de uma rede dita científica, na qual conta, como
integrantes, entre outros, um perfil brasileiro chamado MANUAL.com (Movimento
Amplo do Núcleo de Ubiquidade Alienígena).
Minervina entrega-lhe o papel.
“Pode ficar.”
O ministro pegou o celular.
“Sem sinal! Sem sinal?!”
“Ministro, pedi que prestasse atenção para o que acaba de ocorrer no Rio de
Janeiro. Recebi o informe...”
“Sem internet?! Sem sinal de celular?”
O ministro não só não pratica a atenção em sua rotina, como também não
gosta muito de viver na realidade.
“Sem televisão, ministro... como dizia, ou melhor, como diria ao ser interrompido, recebi um informe de agentes infiltrados na Aldeia Indígena usando
técnica de comunicação aprendida no local que o Rio de Janeiro está sob ataque.
Alienígenas confirmando as previsões do MANUAL. Felizmente, concretizados
todos os argumentos e justificativas nas diversas exposições de motivos com que
retornava em pleito insistente para a liberação prioritária de verbas para as pesquisas do MANUAL.”
João Waine trocava olhares com o ministro, que os desviava para não ter
a impaciência e irritação ampliadas pelo cowboy. Já bastara ter sido aquele oficial arrogante e não ele, ministro, o primeiro a ouvir direto da Aldeia Indígena. O
Ministro gostaria de saber quem lustrou as botas de couro de jacaré de João Waine.
“Belas botas, Waine. Quem lustrou?”
“Café amarelo. Aipim roxo. E o bode branco não leva nada? O senhor não
deve ter me convocado para que eu saísse daqui sem nada para os criadores de
bode branco. Certo?”
De repente, um apagão.