A mulher do trapezista
Ele já se aposentou. O circo já nem mais existe. O trapézio, onde
o vi pela primeira vez, sabe lá Deus onde estará descansando. Mas
foi assim que fiquei conhecida, “a mulher do trapezista”. Lembro-me
daquele dia como se fosse o dia escolhido para o mundo me explicar o
sentido do amor.
Era um entardecer de sábado. Eu fui com algumas amigas ver
o circo. Havia alguma dor que me incomodava. Talvez até uma febre.
Pensei em não ir e fui. O mundo do circo sempre me fascinou.
Havia uma mulher que gostava das conversas um pouco reais,
um pouco inventadas, que morava na casa ao lado da dos meus pais e
que contava uma história de uma mulher de prefeito que fugiu com um
domador de circo. Os detalhes eram tão ricos que me fixei no homem
com a autoridade para silenciar os leões.
Sempre tive dúvidas se tratavam bem ou não os animais, desde
aqueles distantes tempos. Convenci meu pai a não ter passarinhos em
casa. Costume triste que tinha toda a sua família. De armar armadilha
para impedir os voos futuros de um distraído pássaro. Imaginava a mim
mesma, presa em algum lugar que me impedisse de ser quem sou.
Era o último número, o trapézio. Os homens se posicionaram para
encantar. As brincadeiras com o corpo, os saltos, a elegância, a qualidade
de cada movimento. E a música era um convite para penetrar em um
outro mundo. Os aplausos finais foram esfuziantes. E foi, nesse momento, que nos vimos. Eu atormentada com o seu olhar. Ele com o sorriso
dos decididos. Minhas amigas perceberam. Saímos com a lentidão de
quem espera. Brincaram comigo. E foi assim que ele chegou. E foi assim
que ele me convidou para conhecer o amor.
O casamento se deu entre os artistas de circo e as professoras
da escola onde eu lecionava. Outro casamento ali surgiu. Parecia que
os ventos que ventam surpresas chegaram sem economias em nossa
pequena cidade.
Viajei com ele durante algum tempo. Quando podia. Quando vivia
as férias. Em outros, ele me surpreendia, conseguindo folgas para me
fazer viver noites de encantamento.
Depois do segundo filho, ele se aposentou e viveu de cuidar de um
comércio que abrimos juntos. Poucos meses se passaram da decisão
precipitada. Alguma coisa me dizia que algo faltava nele. Não seria eu a
gaiola daquele pássaro lindo que voava nos picadeiros, iluminando de
emoção a vida das pessoas. E foi assim que eu resolvi decidir por ele.
“Você nasceu para a arte, voa, meu trapezista.”
Foi um dia depois de um aniversário seu que ele voltou ao circo
para lá ficar até o dia em que as pernas explicaram o cansaço e que
a vida, na cidade pequena, emprestou um outro tipo de arte. Virou
entendedor de jardins e de árvores frutíferas. Esculpiu esculturas lindas. Todas sobre liberdade. Meu homem nunca perdeu a beleza. Seus
cabelos embranquecidos combinavam com o corpo mais bronzeado da
lida da terra. Suas mãos grandes ganharam calos, mas nunca perderam
a delicadeza ao tocar meu corpo. Para além dos ditos de amor, as vicissitudes. Teve que se equilibrar, muitas vezes, nas durezas da vida. Sem
jamais perder a elegância.
Vivemos uma vida plena. Temos a memória dos aplausos e o
prazer do silêncio. Vez em quando, conto histórias da escola onde me
aposentei, depois de uma vida dedicada a retirar os véus dos medos dos
meus alunos, para que experimentassem a possibilidade de decidir. A
coragem de serem eles mesmos e de, inclusive, viverem os riscos dos
tantos trapézios da vida. E, então, ele me presenteava com as histórias de superação. Com alguma queda, em alguma ousadia nova para
encantar o público. Os riscos dos voos humanos.
Temos saudade do que fomos, mas felicidade do que somos.
Prosseguimos amando na nossa idade, do nosso jeito. Os nossos filhos
já voaram para fazer os seus ninhos. Nada de gaiolas por aqui. E nós
agradecemos a felicidade dos amanheceres acompanhados de amor
nos entardeceres da nossa vida.