Ossian e os “poemas gaélicos”
Polêmicas atraem a atenção das pessoas, o interesse dos leitores,
a curiosidade do público em geral. Nos domínios da Literatura, não são
poucas as que se podem listar ao longo dos tempos: de embates entre
polemistas nas páginas dos jornais a julgamentos de autores na barra
dos tribunais, de acusações de plágio a atribuições duvidosas de autoria,
o interessado nesses assuntos tem matéria de sobra com que se ocupar.
Lembremos O sonho de Ossian, tela de Ingres, uma das favoritas de
Napoleão Bonaparte; trata-se da representação de um sucesso literário
sem precedentes, mas que acabaria por se tornar numa das maiores
polêmicas literárias de todos os tempos. Vejamos resumidamente os
principais lances dessa verdadeira novela, para o qual me socorro de
informações contidas em texto anterior saído no meu Breves Notas
Quase-literárias (2019).
Em 1760, o poeta escocês James Mac Pherson fazia publicar os
chamados “poemas gaélicos”, atribuindo a autoria a um bardo celta de
origem escocesa chamado Ossian. Os poemas teriam sido recolhidos
e traduzidos para o inglês pelo próprio Mac Pherson. De imediato, a
iniciativa serviria de pretexto para disputas políticas entre escoceses
e irlandeses, que partilhavam um passado celta comum. A situação se
agravou quando um crítico, Samuel Johnson, acusou Mac Pherson de
“charlatão, mentiroso e uma fraude”, pois os poemas não passariam de
falsificações. Instalados dois partidos, contra e a favor de Mac Pherson,
o autor escocês Hugh Blair instalou-se no segundo, “provando” a autenticidade dos poemas. Por essa altura, o já controverso Ossian era traduzido em várias línguas europeias, tornava-se tema para telas e óperas,
e suscitava declarações apaixonadas de personalidades como Thomas
Jefferson.
Mas as discussões não tinham fim: a dada altura, o antiquário
irlandês Charles O’Connor negou a autenticidade do material e o Comitê
da Sociedade das Terras Altas intervinha, indagando da autenticidade
dos manuscritos originais de Ossian. Em suma, no início do século XIX,
discutia-se a origem das fontes utilizadas por Mac Pherson, se irlandesas
ou em inglês, em fragmentos gaélicos, entremeado de texto de autoria
do próprio Mac Pherson, ou em tradições escocesas gaélicas genuínas,
como sustentado por ele.
Para resumir a celeuma: em 1952, o estudioso escocês Derick
Thomson concluiu que Mac Pherson utilizou fontes gaélicas genuínas,
mas as alterou, interpolando material de autoria própria. Recente atualização da investigação, a cargo das Universidades de Coventry e Oxford,
constata similaridades entre os poemas de Ossian e narrativas mitológicas irlandesas – algo, aliás, sempre refutado por Mac Pherson.
O interessante é que, durante a maior parte da controvérsia, Mac
Pherson, falecido em 1796, repousava na Abadia de Westminster, entre
outros prestigiosos autores britânicos. E, ainda que tão admirado por
Napoleão Bonaparte, o ciclo de poemas ossiânicos influenciaria por toda
a Europa movimentos literários pré-românticos de caráter nacionalista
– como se sabe, fundados em contraposição às invasões napoleônicas.
A respeito, continuo concluindo, como no texto a que me referi,
que, a se descartar a versão de Mac Pherson (algo que não se logrou),
o Ossian representaria de fato um assombroso caso de “história de
manuscrito” levado às últimas consequências.