Escudos da alma
Decidi, depois de alguma idade, voltar aos bancos escolares. Não que
esteja velho. É que os outros, que ocupam comigo os espaços da aprendizagem, ainda engatinham na fascinante aventura da vida. Aventura onde
também vivo eu. Eu que, a duras penas, compreendi o significado das cicatrizes. Eu, tantas vezes, feito sem importância na vida dos outros.
Amei desesperadamente, o que já demonstra um certo desconhecimento do amar. Gastei partes de mim em súplicas de alguma reciprocidade.
Cheguei a dizer: “Sei que você não me ama, não faz mal, eu amo por nós
dois.”
Vi Tereza, a primeira mulher que ofereceu a mim um beijo, beijar um
outro. Era cedo demais para desconfiar dos sentimentos.
Vi seu texto de incompreensão comigo. Éramos jovens. Que bobagem
decidirmos ter um ao outro. Em mim, já naqueles dias, morava a utopia
da eternidade do amor. Envelheceríamos juntos, rindo da vida linda que
vivemos. Tereza e eu.
Depois veio Cristina. Era como uma ocupação em terreno não preparado. O luto, aprendi depois, consome algum tempo. Fiz Cristina sofrer
o que eu sofri, sem intenção. Como ela me quis! Como ela se modificou
para modificar o que eu não sentia por ela! Então, entendi melhor Tereza.
O outro não é uma parte que nos falta. O outro é o outro. O outro não é o
responsável pelo amor que não brotou. O amor é meu. E o tempo da compreensão, também.
Foi com Helena que me casei. E, se com ela não houve os solavancos
das paixões juvenis, houve paz. Há paz! Estamos juntos há 33 anos. Nossafilha já tem a sua filha. Nossos sentimentos sobreviveram às janelas abertas
que são capazes de deixar entrar todo o tipo de tentação. Formamos um
escudo, um escudo em nossa alma.
Há promessas de novidades que podem nos desassossegar. Tive eu
e, certamente, teve ela. Os sentimentos, quem os decide? O único poder
que temos é o que fazemos com os sentimentos que nos vêm. Decidimos
permanecer e isso foi bom.
Rosa é professora do curso de psicologia que me trouxe novamente
à faculdade. Como gosta essa mulher do que faz. Abre as aulas oferecendo
sorriso. Inicia o assunto como se iniciasse um ritual sagrado em que o saber
será compartilhado, em que o saber poderá ser entranhado e transformar
vidas.
Anoto as lições para viver. Vejo meus jovens colegas absortos na voz
de Rosa. O tema de hoje é o amor Eros. O amor das flechadas. O amor dos
prazeres e das mendicâncias. Nas concordâncias corporais, eu visito as
mentes daqueles alunos. Quantos ali já se identificavam com as incongruências da paixão, com as dores da rejeição. Comparo, não por mal, Rosa
a alguns outros professores. A lamentável ausência da paixão na arte de
acender novidades nos alunos. O necessário despertar das curiosidades.
Minha mulher brincou ciúmes de Rosa comigo. Eu sorri explicando
que ela ainda ensina aos 89 anos e que, talvez, não tenha eu os atributos
necessários para despertar nela alguma outra paixão que não a de ensinar.
Os escudos da alma que esculpimos juntos, Helena e eu, nos desautorizam as mentiras. O amor faz com que nos preocupemos um com a segurança do outro, com a serena vida de quem confia. E, assim, a felicidade
permanece sem muita cerimônia.
Não me imaginem perfeito. Histórias perfeitas não vivem nem no
Olimpo, a tal da morada dos deuses, de Eros e de tantos outros explicadores
dos inexplicáveis sentimentos humanos. Na nossa casa, moram Helena, eu
e os nossos aconchegos, que enfrentam, com escudos de respeito, os frios
das janelas abertas ou suas mentirosas promessas de calor.