Aracy Balabanian e a Armênia

Perplexos, estamos assistindo a um genocídio, ao extermínio deliberado dos ucranianos pelo russos. Milhares de pessoas em movimento, tentando fugir da zona de combate, cruzando fronteiras, espalhando-se pelo mundo. Algo semelhante aconteceu com a Armênia que, durante a Primeira Guerra, foi tomada pelos turcos otomanos, que acusaram os armênios de serem aliados dos russos. Vieram os massacres, as deportações, a faxina étnica, num processo implacável e sangrento que levou à morte muitos armênios. As autoridades turcas, no entanto, sustentam que tudo foi resultado de uma guerra civil acompanhada de doenças e fome. A República Soviética transcaucasiana foi dividida entre Armênia, Azerbaijão e Geórgia, gerando tensão, medo, terror. A independência veio apenas no dia 21 de setembro de 1991, tornando a Armênia uma nação vocacionada para o desenvolvimento e a liberdade.

Foi nessa onda de êxodo e valentia dos armênios que o pai de Aracy Balabanian veio para o Brasil, fixando-se em terras de cerrado do sul de Mato Grosso, na cidade de Campo Grande, numa rua central, a Dom Aquino. Os armênios logo perceberam que era uma boa praça para o comércio e dedicaram-se principalmente ao ramo de calçados. Nessa mesma rua, onde moramos até hoje, meu avô português, o Carvalhinho, fabricava e vendia móveis. Nossas famílias eram, portanto, vizinhas e amigas, sendo Aracy da mesma idade que minha mãe. A família Balabanian era singular. O pai de Aracy casou-se pela segunda vez com uma senhora armênia, também viúva. Ele com cinco filhos e ela com um. Aracy foi o fruto dessa união e conviveu cercada de irmãos, num total de sete. Foram educados para a vida, orientados para serem independentes, neste novo país em que foram acolhidos. E Aracy, nascida em 1940, em Campo Grande, trilhou esse caminho.

Aos quinze anos, Aracy mudou-se para São Paulo. Estudou Sociologia e Arte Dramática, pois o teatro sempre foi sua paixão e o palco, o seu lugar. Desde criança, queria ser anjinho no auto de Natal. Um dia, ouviu a reprimenda: “Com esse nariz adunco e os olhos saltados, você não pode ser anjinho. Anjinho é só loirinha, que tal pastorinha?” A menina armênia cresceu, virou atriz e, mais tarde, para sua surpresa, um diretor lhe disse: “Você veio da terra sagrada, oriental, exótica. O papel que lhe cabe é o de Maria.” Foi um grande triunfo. Décio Almeida Prado, depois de vê-la atuar, declarou: “Ontem nasceu uma estrela.”

Aperfeiçoou-se com professores da categoria de Cacilda Becker e Sábato Magaldi. Seu sonho foi crescendo. Fez carreira no teatro, no cinema e na televisão. Foi a Antígona, da tragédia de Sófocles; par romântico de Sérgio Cardoso na novela Antônio Maria. Tornou-se uma das maiores intérpretes do meio artístico com personagens inesquecíveis, até chegar à excêntrica Dona Armênia, nas novelas Rainha da Sucata e Deus nos Acuda, de Sílvio de Abreu. Com Dona Armênia, Aracy pode fazer uma homenagem à sua descendência, lembrar da sua infância, treinar o sotaque, passar toda a sua emoção. A expressão “na chon”, bordão de Dona Armênia, virou sucesso nacional.

No livro Nunca Fui Anjo, Aracy desvenda fatos dramáticos, trágicos, cômicos e surpreendentes de sua vida, registrados por Tânia Carvalho. Conta que optou por não se casar e não ter filhos para abraçar unicamente a carreira. Que renasceu das cinzas, depois de um incêndio que destruiu seu apartamento na Gávea. Revela-se uma pessoa íntegra, autêntica. Uma cidadã do Brasil que tem a Armênia no coração. A Armênia que supostamente outrora foi o Jardim do Éden bíblico. Que, segundo a tradição judaica, foi onde a arca de Noé encalhou após o dilúvio, próxima ao monte Ararate. A Armênia dos impérios, do cristianismo, das dinastias, das ocupações árabes e persas. Assim Aracy se pronunciou no livro Armênios e Brasileiros: marcas de uma convivência, de Sossi Amiralian: “Meus pais me encantavam; a ternura que nos deram, mesmo depois de tudo o que passaram e viram durante a guerra. Jamais guardaram rancor.”

Você continua nos encantando, Aracy, com o testemunho de uma esperança que vem do perdão e da coragem de lutar, de recomeçar.

Por Raquel Naveira - Membro da Academia Sul-Matogrossense de Letras.