A Semana de 40 anos! - Parte II

1922 – A Semana de Arte Moderna e uma nova cidade na ponta da linha

Neste ano de 1922, no salão da Pensão Central, no largo da Matriz, diverti-me com os comentários entre sorrisos dos leitores de um exemplar do Correio Paulistano. Era uma reportagem interessante, falando numa tal “arte moderna” que um grupo de escritores, músicos e artistas da pintura e da escultura e outros promoveriam na Pauliceia. E seria no mês que vem, quero dizer, fevereiro. Eu não preciso ler o jornal, pois basta que estejam próximos e já me informo de seu conteúdo; os leitores na pensão, porém, ficaram curiosos: o que é arte moderna? Se um quadro foi pintado hoje, ou se uma música foi composta ontem, é claro que é moderna. Sei não... – pensavam, intrigados, esses leitores. Um dos recém-chegados, justo o portador do grande jornal paulistano, resolveu esclarecer o tema. O homem, aparentando 30 anos, apresentou-se como “advogado e beletrista”, e começou a discorrer sobre o que vinha a ser a tal arte moderna: nas letras, o escape das formas tradicionais – na poesia, por exemplo, caiu o rigor das métricas e acentuações tônicas, como também as rimas seriam ignoradas ou até mesmo abolidas. No conteúdo, uma drástica transformação na contística, nos romances e também nos versos; qualquer assunto passa a ser interessante e digno da arte das belas letras. No desenho e na pintura, como na escultura, as formas seriam mexidas de modo radical! A figuração perderia muito de sua importância, as cores viriam intensas nos tons e nas variedades, o artista passa a desfrutar de sua plena liberdade criadora etc. e tal, e na música muita novidade viria, também, pois o admirado maestro Heitor Villa-Lobos era um dos mais animados dentre os participantes do importante evento.

Não faltou quem questionasse: mas isso vai continuar se chamando arte? O beletrista, em defesa de sua adesão ao tema, afirmava que sim; e como advogado, evocava o direito às liberdades da criação, pelo fim dos rigores escravagistas que cerceiam os voos da imaginação e exaltava “o abuso dos sonhos em seus voos sem limites”. Esse beletrista doutor em leis e processos foi meu escolhido nesse fim de tarde, comecinho de noite. Ele próprio surpreendeu-se por tão espontânea e eficaz inspiração, buscando palavras apropriadas e de modo a ser bem compreendido por aquele público, no qual, sem dúvida, haveria pessoas sem alcance acurado ante um discurso pomposo; era preciso falar claro, de modo a ser bem compreendido e, convenhamos, era esse um dos propósitos nos argumentos de Oswald de Andrade.

Na capital do Estado, a antiga Vila Boa que, agora, se chama Goiás (na escrita da época, Goyaz), uns poucos letrados destacam-se por seus feitos estampados em parcos jornais locais. Nos primeiros anos do século, por volta de 1905, circulava até mesmo um jornal feminino, A Rosa, no qual destacavam-se duas meninas-moças, Leodegária (de Jesus) e Aninha (Ana Lins dos Guimarães Peixoto), poetisas. Em 1922, poucos letrados – quase sempre advogados e alguns farmacêuticos, que, por extensão e necessidade da sociedade, eram também professores – praticavam as letras. Poucos eram também os artistas plásticos em lides de escultura e pintura; um grau de artesanato marcava os afazeres de costureiras, alfaiates e finalizadores das construções civis.

Lá em São Paulo, capital de província – depois Estado – importante na política e na economia desde os tempos coloniais, a vida cultural se agitava sob ações dos escritores Oswald e Mário, ambos de Andrade (sem parentesco), Menotti Del Picchia e Guilherme de Almeida, entre outros. Também de realce era a participação de vários artistas plásticos, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Tarsila do Amaral. O maestro Heitor Villa-Lobos há de ter sido a maior referência entre os músicos.

1922 em Goiás: um poema diferente, fora dos prumos românticos e parnasianos

Contudo, o movimento não atingiu Goiás. Soube-se do acontecido, comentou- -se a novidade. A mudança – como toda mudança – amedronta; e amedrontou. Tanto é que, seis anos depois, o juiz de Direito Cylleneo de Araújo, ao publicar seu único livro (em vida), Ontem, foi tido como o pioneiro do modernismo em Goiás. Cylleneo, em seu ofício de poeta, construiu um codinome com um diagrama de seu prenome: Leo Lynce.

Nascido em Pouso Alto, recebeu o nome de Cylleneo Marques de Araújo Valle. No ano de completar o décimo aniversário, é internado no Seminário de Ouro Fino, pequena e importante localidade bem próxima a Vila Boa, capital do Estado. Em breve o seminário era transferido para Uberaba, em Minas; o menino segue para Bela Vista de Goiás, nova residência de sua família após a morte do pai. O menino – ele diz isso em um poema – teria herdado da mãe os dons que o levaram à escrita literária.

Caldas Novas voltara a um estressante marasmo após a inauguração, em 31 de janeiro de 1921, da Ponte São Bento, que a aproximava da estação ferroviária de Ipameri. Alguns jovens como Oscar e Celso liam notícias sobre os artistas modernistas de São Paulo, mas não tinham nada a fazer senão trocar ideias entre si. E o coronel Bento, por volta de 1925, procurou seu adversário político Luís José Pereira e propôs-lhe uma sociedade, uma empresa para construir uma usina hidrelétrica que, em 1927, iluminaria a pequenina cidade das termas. E eu, na existência etérea, troquei o foco; percebi a inquietação daquele Cylleneo e não o perdi em minhas observações. Aos 15 anos, publica seus primeiros versos. Nesse mesmo ano, 1900, o jornalzinho de sua estreia deixa de ser desenhado e entra na fase impressa; Cylleneo cria um Grêmio Instrutivo, com rapazes (como ele) ávidos de conhecimentos; e passa a ser publicado nos jornais Araguari, Gazeta de Uberaba e Lavoura e Comércio (também de Uberaba). Fez-se, ao fim da adolescência, um peregrino sem receios, pronto a deslocar-se e adaptar-se a novos sítios e ares. Tais andanças por Goiás (ele gosta de escrever Goyaz) e outras terras, umas meio distantes, outras distantes demais, rendem-lhe um valoroso conhecimento – o que se tem por autodidatismo. E o natural, em tais casos, é um aprendizado espontâneo, processo que assegura, mais que a memorização, a fixação indelével do que se viu (e se assimilou). Antes dos 20 anos, é nomeado Juiz Municipal para a Comarca de Bela Vista – que cobria uma grande área no Sul de Goiás, um Estado cujo território supera os 700 mil quilômetros quadrados e uma extensão superior a dois mil km, de Norte a Sul. Funcionário hábil em questões de terras, assume direções de jornais aos 21 anos e abrevia seu nome para Cylleneo de Araújo. Ato contínuo, adota o nome literário pelo qual se faz conhecido – Leo Lynce (anagrama de seu nome). Envolve-se em política, é perseguido, muda-se para o Rio de Janeiro, depois para Uberaba, retorna a Goiás e vive em várias cidades: Jataí, Palmeiras de Goiás, Catalão; elege-se deputado e, na capital (Cidade de Goiás); começa o curso de Direito. Vive, por curto tempo, em Campos de Goitacazes, no Estado do Rio, e retorna a Goiás.

Vida muito ativa, pois, com intensa atividade no jornalismo e na Instrução. Em 1922, empolga-se com as notícias acerca da Semana de Arte Moderna – é nesse mesmo ano que produz o poema Goyaz (que não pode ter seu título mudado para a grafia Goiás, pela exaltação do Y na terceira estrofe. O poema, com estrofes ora de seis versos, ora de cinco e, ainda, com sete versos, tem nítida integração com os propósitos dos literatos do movimento, em especial com as ideias dos Andrade – Mário e Oswald.

1945 – Resolvi nascer, que a vida etérea impedia-me de praticar a escrita com grafite ou tinta sobre o papel
Viriam outros tempos tediosos: um golpe político em 1930, uma efervescência em 1934, muito barulho em 1937 e, no final da década, uma guerra por demais sangrenta na Europa, com reflexos inevitáveis no Novo Mundo. O conflito teve reflexos amplos, chegando a perturbar a paz dos pachorrentos sertões de Goiás. Por tantas assim, decidi por outra coisa – materializar-me por estes cerrados e veredas, com prioridade para as tépidas águas das Caldas – as Velhas, as Novas e as de Pirapitinga. Nasci, então.

Alguns estudiosos entendem como marco da modernidade literária em Goiás como sendo 1928, ano da publicação do único livro, em vida, pelo autor: Ontem. O poema Goyaz, porém, foi escrito em 1922, nas proximidades de 9 de novembro – data de fundação da cidade de Pires do Rio, nascida em torno da nova estação “no fim da linha” da Estrada de Ferro Goiás.
Aqueles seis anos de intervalo entre A Semana e a publicação de Ontem foram ignorados pelos poetas locais, ainda fixados nas marcas do Romantismo e do Parnasianismo.

Apenas 41 anos...

E a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, refletiu-se em 1922 na pena sensível de Leo Lynce, quando um pequeno grupo se reunia em torno de um obelisco para marcar o surgimento de uma nova cidade em ponta de linha férrea, nestes confins de Goiás; críticos e pesquisadores precisaram de um livro em 1928 para saber dessa estreia, que só encontra eco, de vez, a partir de 1963, com a surpreendente revoada de versos livres por um bando de jovens impertinentes que se identificavam como Grupo de Escritores Novos.

Ainda assim, e ainda desde 1963, não são raros os prosadores que insistem num linguajar anacrônico, com palavras em desuso desde os antecessores de Machado e Lima Barreto. Também ainda surgem poetas que elaboram uma narrativa curta o bastante para não passar de cinco linhas de prosa que, a esmo, são cortadas em supostos versos e espalhados na página – muitos deles, em nome de uma modernidade personalíssima que nada tem a ver com modernismo, sem pontuação e sequer com o uso de maiúsculas.

E a estes, surpreendentemente, retornam comentários e críticas feito alvíssaras em tons de retardos, expondo críticos sem lastro intelectual nem apego à arte das letras. Menos ainda a princípios os mais comezinhos da Última Flor do Lácio, conceito que tais beletristas podem bem atribuir a Bandeira – ou a Neruda, sabe-se lá!

Por Luiz de Aquino - Jornalista e membro da Academia de Letras de Goiânia