Semana de 40 anos! - Parte I
De um ponto favorável, ou seja, não sendo visto nem sentido com
clareza pelas pessoas, acompanho a vida de um pacato lugarejo no Sul
de Goiás. Isso faz de mim um espectador privilegiado e, ao meu modo, sei
como e quando interferir em favor de melhores condições nesse povoado.
Contarei, a seguir, aspectos de seu cotidiano, numa realidade carente de recursos e iniciativas – daí os meus palpites, cada um como mola a
ativar algum movimento.
1920 – Caldas Novas e a ponte São Bento
Manhã cinzenta, esta, de céu fechado e chão lamacento. Faz frio e
o chão é mole, baboso, escorregadio. As ruas cheias de poças, algumas
alongadas pela trilha das carroças com roda de madeira. Tem também
os caminhões e dois automóveis, que têm rodas de borracha chamadas
de pneus, mas esses carros com máquinas não levam vantagem sobre
as carroças e charretes, as máquinas atolam mais – porém, os caminhões que passam às vezes por aqui não ficam presos na lama, porque
nos tempos de chuva colocam correntes nas rodas e assim escapam do
grude dos atoleiros. Os caminhões levam sacas da produção de arroz,
feijão, mandioca e milho para Ipameri, onde tem a estação do trem e de
lá essa carga segue para Minas e São Paulo. Na volta, os caminhões trazem produtos das fábricas de São Paulo ou dos portos do Rio de Janeiro
e de Santos para as lojas daqui e de Morrinhos.
Minha presença é pouco notada. Aliás, ninguém me olha, ninguém
me vê. A bem de ser justo e sincero, sou quase imperceptível: alguns me
ouvem, não em som aberto e nítido, claro, límpido: costumo soprar sugestões e conselhos, ou apenas palpites ocasionais e determinantes ao ouvido
dos seres, em especial dos capazes de impor decisões por novos atos e feitos
que venham em favor da melhoria de vida da comunidade.
O coronel Bento de Godoy pediu ao governo que fizesse uma ponte
no Corumbá, na divisa de Caldas Novas com Ipameri, mas o presidente
do Estado disse que não tem recurso para a ponte, por isso o coronel
mudou o pedido e trouxe de lá a concessão para construir e aplicar
pedágio para recuperar o investimento. A ponte está em construção,
estão fazendo as cabeceiras dos dois lados, em alvenaria forte para
aguentar o peso. Um engenheiro estrangeiro falou numa ponte pênsil,
que vai levar madeira de lei e cabos de aço. Ele explica que não vai ter
colunas dentro d´água porque a garganta onde se constrói a ponte é
muito estreita e de grande profundidade, por isso a tal ponte pênsil – que
será sustentada por fortes cabos de aço. Por enquanto, os caminhões e
carroças grandes levam a produção das roças até a beira do rio e passam
para o outro lado na balsa; quando a ponte estiver pronta, vão passar
direto, vai ser só pagar o pedágio e seguir viagem.
Incomoda-me tanta chuva. Mas, dirão as senhoras e os senhores leitores, se não me molho nem sinto frio, porque me incomodo com a chuva?
Simples: muitos são os entraves, os incidentes e mesmo os acidentes em
que minha presença, minha quase imperceptível presença, se faz necessária e, não raro, decisiva. Estimulo a criatividade dos que acodem, inspiro
força física aos que dela necessitam para solucionar determinados impasses – como uma carroça atolada, alguém ferido que necessite de remoção
e não tem condição individual para isso etc.
O dia está terrível! Ninguém aguenta tanta chuva! Os caminhões
que vêm de Ipameri trazem também doentes e viajantes curiosos para
tratar ou apenas conhecer as águas. Chegam cheios de dúvidas não acreditam que há minas d’água quente no leito e nas margens do córrego das
Lavras. Este nome é por causa da mineração. Quando chegaram aqui, os
bandeirantes batiam bateias pelo aluvião do córrego procurando ouro.
Acharam um pouco, pouco mesmo; a riqueza da terra é a temperatura
das águas.
Cheguei a vê-los, naqueles primórdios, no afã de bamburrar,
colhendo muito de ouro em pó ou, eventualmente, uma expressiva pepita.
Deliciavam-se, mesmo, no prazer do banho quente à margem, relaxando a
musculatura cansada e sentindo aumentar o desejo sexual, para saciá-lo
com a parceira costumeira, com um rapazola que ainda não tivesse sua
definição e preferência ou, ainda, dando vazão solitária ao imaginário.
Gosto de ver a chegada dos caminhões e carroças trazendo produtos da indústria e viajantes para os banhos. Como disse, uns vêm pela
saúde, outros pela curiosidade. Os primeiros são chamados de pacientes, os outros de turistas que, dizem, é algo que vai acontecer muito no
futuro. Sei não... Fosse para receber tanta gente aqui e se isso fosse render
dinheiro para a cidadezinha, o trem teria vindo p’ra cá, mas preferiram
manter a rota e levar a linha para os rumos do Roncador. Estão fazendo
lá a estação e já surge por lá um povoado, uma cidade nova. Por isso o
coronel Bento teima com a tal ponte; afinal, Ipameri está a umas dez ou
doze léguas, nem é tão longe – o problema é o Corumbá.
Viajantes que vêm de Minas e de São Paulo costumam trazer jornais. Ipameri também tem jornal. E todos são interessantes, como o
Lavoura e Comércio, de Uberaba, além dos que chegam da capital de
São Paulo e da capital federal, o Rio de Janeiro. Comerciantes gostam
dos jornais para, depois de lidos por eles e clientes que frequentam suas
lojas para os dedos de prosa de todas as manhã, servirem de papel de
embrulho.
Em Caldas Novas, os doentes pobres acomodam-se em ranchos
simples num alinhamento novo chamado de Rua da Palha, por causa da
cobertura dessas casinhas com folhas de palmeiras, que são muitas na
região. Os mais afortunados hospedam-se na pensão que tem no largo
da Matriz. E é ali, no salão de entrada, que os viajantes vindouros costumam deixar jornais, que leram durante a viagem de vinda. Cadernos e
folhas são separados e passam de mão em mão para a leitura de todos,
ávidos de novidades e de assuntos para as conversas naquele ermo: um
povoado pequeno que, menos de dez anos atrás, ganhou foro de município.
Gostei das ações, das agitações e das reuniões que anteciparam e
coincidiram com a outorga legal que fez do arraial de Caldas Novas um
município autônomo, em 1911. Fiz zumbidos oportunos e saudáveis nos
ouvidos internos do coronel Bento, de seu sobrinho José Teófilo, do coronel
Orcalino Lopes de Morais e outros notáveis da pequenina comunidade
chamada, na época, de caldense; com o tempo, fez-se necessário aplicar-se o gentílico apropriado, diferenciado de outras localidades que se
valiam do mesmo termo, por isso a mudança foi necessária e oportuna,
corrigido para caldas-novense.
E nestes tempos, seu prefeito é um engenheiro civil, sobrinho do
coronel Bento, nascido em Estrela do Sul, em Minas, e formado no Rio
de Janeiro. Esse moço é filho de importante figura do Triângulo Mineiro,
Teófilo de Godoy, o pioneiro que buscou na Índia uma raça exótica de
bovinos, o zebu. O engenheiro José Teófilo só ostentava o nome civil em
documentos, como seus autos e lados profissionais, além da papelada
da Prefeitura, pois, para toda a cidade, e até sua morte, seria conhecido
como Juca. Juca de Godoy, engenheiro e poeta.
Um ano depois dessa invernada de chuvas persistentes, deu-se
a inauguração da ponte, no ponto em que o rio Corumbá se estreita
e – dizem – torna-se mais profundo o seu leito; o local é chamado de
Rochedo, referência óbvia às colunas de pedras escolhidas como alicerces para as cabeceiras da ponte pênsil. Seu nome, Ponte São Bento, é
uma evocação ao santo de que o coronel Bento de Godoy é devoto.