Casa Mário de Andrade

Entrei com uma pasta cheia de livros no elevador. Uma senhora de cabelos castanhos e óculos dourados cumprimentou-me sorrindo:
– Vai dar aulas?
– Sim, uma oficina poética na Casa Mário de Andrade.
– Na rua Lopes Chaves?
– Isso.
– Morei na rua Margarida, fui vizinha de Mário de Andrade. Minha mãe era amiga de Dona Maria Luísa, a mãe de Mário. Costurava roupas para ela. Muitas vezes, eu era uma menina de uns sete ou oito anos, eu o via tocando piano ou debruçado na janela observando a brincadeira da criançada.

O elevador se abriu e nos despedimos. Reconheci que ela, por trás do sorriso e dos óculos dourados, tinha uma experiência maior que a minha de vida, de São Paulo e de Mário de Andrade, malgrado o peso de minha pasta cheia de livros.

Que emoção pisar na casa de Mário, naquele canto da rua Lopes Chaves. Um sobrado simples, de cômodos grandes e arejados. Não é um museu. Das coisas de Mário, restaram o piano preto, alguns livros numa estante e um antigo armário de xícaras e louças na cozinha, onde ele certamente guardava um doce de calda e um vinho econômico. Na principal sala de aula, uma fotografia enorme do grupo que participou da Semana de Arte Moderna: Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Murilo Araújo, Paulo Prado, Graça Aranha, Victor Brecheret e o jovem Mário, que se tornaria o líder dessa revolução artística.

Os alunos me aguardavam no andar superior, no quarto que pertencera a Mário. Fecho os olhos e posso vê-lo: alto, queixo enorme, de robe de chambre de seda, sentado junto à escrivaninha, à luz do abajur, sempre lendo, pesquisando, escrevendo cartas que enviava a intelectuais de todo país. Sobre a escrivaninha, a máquina de escrever, que ele chamava de “Manuela”, em homenagem ao poeta Manuel Bandeira; as laudas de papel em branco que depois tomaram forma de livros como Pauliceia Desvairada, esse canto cruel, concebido entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, buzinas de automóveis e fagulhas de bonde.

O ambiente da casa de estudos hoje é tão despojado, mas sei que essas paredes eram cobertas de quadros como o “Homem Amarelo”, comprado naquela célebre exposição de Anita Malfatti, que revelou para ele uma transformação radical de conceitos. Que admiração tinha Mário por essa artista cheia de paixão e arrebatamento, que pintava a ventania, a chuva, a neblina, os faróis e as cabanas de pescadores em telas e mais telas, num turbilhão estranho de cores e formas. Talvez ela o tenha amado secretamente. Um amor não correspondido e sublimado.

Pensar que nessas salas aconteceram reuniões, debates, polêmicas sobre o futurismo, essa ânsia de esfacelar velhos moldes literários e arejar o pensamento. Que aqui Mário ora tocava músicas para os amigos, ora lia poemas, ora comentava trechos de seus romances, como Macunaíma, o herói brasileiro sem nenhum caráter, o anti-herói, o resultado da miscigenação de várias etnias e culturas.

Debaixo desse teto, Mário envelheceu e viu tudo explodir: políticas, guerras, ditaduras, amizades profundas, casamentos de artistas. Como devem ter doído o rompimento com Oswald de Andrade por discordâncias em questões estéticas e morais e os gritos do povo na rua: Getúlio, Getúlio! Como deve ter sofrido ao perceber que não mais fazia sentido a sede destrutiva da Semana de Arte Moderna. Depois de um período trabalhando no Departamento Municipal de Cultura, onde criou bibliotecas e discotecas, restaurou documentos, fez o levantamento do patrimônio histórico paulista, Mário enfrentou na rampa dos cinquenta anos um tempo triste, crepuscular, em escreveu versos como estes: “Nesta rua Lopes Chaves/ envelheço, e envergonhado/ nem sei quem foi Lopes Chaves.// Mamãe me dá essa lua,/ ser esquecido e ignorado/ Como esses nomes de rua.”

Terminada a aula, ao descer a escada de madeira rangente, lembrei que foi ali que Mário, num domingo distante, sentiu uma dor no peito e tombou. À noite, um segundo ataque de angina foi fatal. Esgotaram-se as forças desse guerreiro, proletário da inteligência. Amanhã, se eu encontrar de novo aquela senhora de cabelos castanhos e óculos dourados, vizinha de Mário, poderei lhe dizer que ainda há afeto familiar, modéstia e bondade, naquela casa da rua Lopes Chaves.

Por Raquel Naveira - Da Academia Sul-Matogrossense de Letras