Um ourives da linguagem
Em seu percurso literário e existencial,
Cunha de Leiradella contabiliza uma bibliografia
premiada e bem recebida pela crítica, antes e
depois de sua chegada ao Brasil (em 21 de abril de 1958, para escapar
à ditadura salazarista), onde viveu mais de quatro décadas, antes de
retornar às suas raízes portuguesas, vivendo atualmente em São Paio de
Brunhais, no Concelho de Póvoa do Lanhoso, no distrito de Braga.
Aos 87 anos e em plena atividade criativa e intelectual, o autor (que
durante sua vida, primeiro no Rio, e a maior parte em Belo Horizonte,
onde foi presidente do Sindicato dos Escritores de Minas Gerais e agitou
a cena literária da Capital), acaba de lançar seu novo livro, Isto Não é um
Romance (Ed. Nova Fronteira, Rio, 2021, 120 p.).
Obra que dá continuidade às deambulações de Eduardo da Cunha
Júnior, personagem que habita suas histórias na pele de protagonistas
tão diversos e constitui uma fauna espalhada por mais de vinte títulos
como Sargaços (1984), Cinco Dias de Sagração (1993), O Circo das Qualidades
Humanas (1998), O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior
(1997), Os Espelhos de Lacan (2004), dentre outros, transitando pelo
conto, novela, infantojuvenil, dramaturgia, jornalismo.
Funcionando como espelho autoral, Eduardo da Cunha Júnior
empreende nesse novo romance uma espécie de encontro de contos
com a própria vida. Septuagenário, vive sua recolhida aposentadoria
e estratégica insularidade na companhia de dois seres que poderiam
parecer-lhe estranhos intrusos, mas revelam-se interlocutores
silenciosos em sua misantropia e reclusão: o gato Tovarich e a passarinha
Minha, que lhe dão suporte psicológico ao lado de seus livros, enquanto
des(a)fia o novelo da memória. Na convergência entre o passado e o
presente, as lembranças de um amor platônico, que agora emerge sob
o influxo de um tempo premido pela monotonia, apenas quebrada por
esse diálogo ficcional em que uma realidade sensorial e emotiva aflora,
dando asas a uma intimidade mental e psicológica repleta de expansões
oníricas.
No rio caudaloso das recordações, o personagem deslinda suas
leituras, revisita seus autores prediletos (vamos encontrar a intertextualidade,
ao invocar autores como Albert Camus, David Mourão-Ferreira,
Cèlineetc), retoma os passos de certos personagens que, ao fim e ao
cabo, são projeções de sua própria geografia, na apreensão dos sentidos
de uma vida, como um estrangeiro a viver o mais fundo de sua noite, o
seu outono indesviável.
O livro vai exumando o tempo de Eduardo da Cunha Júnior, em
que Beatriz renasce simbolicamente como metáfora da inconcretude,
o que alimentou sua juventude seja em termos afetivos ou na funcionalidade
do cotidiano, período em que viveu conflituosa relação com
os pais, enquanto passava os dias encenando fados com um amigo
na expectativa de um amor não correspondido, porque não declarado
àquela musa de seus tempos de liceu.
Leiradella consolida com Isto Não é um Romance (e aqui encontramos uma
alegoria magritteana ao universo das aparências que a arte
sempre evoca ao nos contrastarmos conosco e com o mundo tangível)
sua rica bibliografia, prestigiada por algumas das mais importantes
láureas do Brasil e do exterior, destacando-se: Prêmio Antônio Chinaglia
(Rio, 1981), Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte
(1984 e 1986), Prêmio Plural (México, 1987 e 1990), Prêmio Instituto
Nacional do Livro – INL (1988), Concurso Nacional de Contos do Paraná
(1990), Prêmio Cruz e Sousa (Florianópolis, 1995), Prêmio Literário
Terras de Lanhoso (1997), Prêmio Caminho de Literatura Policial de
Portugal (1999).
Verdadeiramente um sensível ourives da linguagem, como enfatiza o professor,
escritor crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, que
na apresentação ressalta as qualidades intrínsecas e as
sutilezas estilísticas do autor:
“a partir do fluir de recordações do narrador, a dissimulação como traço distintivo do seu caráter, o que nos
leva a concluir que seria uma espécie de Capitu portuguesa em formação. Em resumo: neste conto-romance,
Leiradella, tendo vivido pelo menos metade de sua vida no Brasil, soube como unir o que de melhor cada variação do
idioma português nos dois continentes poderia lhe oferecer, produzindo um texto sensível que se destaca
pelo vigor da linguagem e por frases poéticas
compostas pela habilidade de um verdadeiro artesão da palavra.”