O escritor aqui ao lado
Não que de perto ninguém seja normal, como há quem diga. Melhor não polemizar.
Mas o fato é que o leitor-simpatizante pode muito bem ter seu interesse despertado
por dados pessoais do autor a quem admira. A propósito disso, quem nunca se pegou
(ainda mais em tempos de motores de busca na internet) fuçando dados sobre um ou
outro escritor de sua predileção, ou cuja obra lhe tenha tocado de maneira especial?
Nesse sentido, me vem à mente a obra memorialística de Zélia Gattai, de muito
interesse por desfiar informações sobre dois grandes escritores brasileiros, ela própria e
o marido, Jorge Amado. Se não se tratar de exemplo único entre nós, sem dúvida é o mais
significativo, pela extensão de que se ocupa do tema. A Casa do Rio Vermelho, Códigos de
Família, toda a obra da escritora lê-se com interesse, e não só pela qualidade da narrativa:
ali o leitor se depara com a face humana, a vida comum de dois grandes escritores.
Gente como a gente, constata-se, o que é bem ao gosto do público.
Por outro lado, até por seu maior recuo no tempo, há autores cuja aura quase
mítica impõe um distanciamento respeitoso, a exigir doses significativas de reverência
e solenidade ao nos referirmos a suas pessoas: um Tolstói, um Dostoievski, um Victor
Hugo, uma Jane Austen, um Balzac, um Flaubert, um Charles Dickens. Sob certos aspectos,
legendas da atividade literária, autores cuja reputação “profissional” é quase que
inabalável.
Mas até mesmo com relação a estes últimos é legítimo nos indagarmos: como
seriam de perto essas personagens? Como seria lidar diretamente com eles, conviver
com eles no dia a dia, frequentando-lhes a mesa, privando de sua companhia?
Felizmente, chegaram até nós uma série de bem cuidadas anotações, pródigas em
informações desse tipo e que se prestam bem a satisfazer a curiosidade de leitores e demais
interessados. Refiro-me aos famosos Diários dos irmãos Goncourt, Edmond e Jules –
aliás, eles mesmos personagens da cena literária parisiense do século XIX, com seu nome
ligado à academia que atribui o mais prestigioso prêmio literário da França.
Quanto aos Diários, há quem diga não passarem de fofoca. Lendo-os, entretanto,
com uma mirada mais ampla, percebe-se que o que temos em mãos é uma visão panorâmica
da vida intelectual contemporânea, pinçada exatamente do ponto de sua maior
irradiação. Mas abstraídas essas cogitações de caráter mais grave, o certo é que certas
impressões dos autores sobre personagens de seu convívio são, o mais das vezes, deliciosas.
Quem mais poderia afirmar impunemente que “o que mais chama a atenção em
Hugo, que tem a ambição de se dizer pensador, é a falta de pensamento” (p. 30)? Ou que
Flaubert “tem um fundo provinciano e gosta de contar vantagem” (p. 32)? Ou que “estou
inclinado a crer que a loucura não ataca as personalidades fortes, os grandes talentos.
Pode às vezes ter efeito sobre um Baudelaire, um burguês que se atormentou a vida
inteira querendo parecer louco. Aplicou-se tanto que morreu idiota” (p. 187)? É como
se topássemos o escritor aqui ao lado, ao alcance de um chiste ou de uma confidência
qualquer.
Esse repertório vê-se novamente acessível ao leitor nacional, em trechos selecionados dos Diários:
memórias da vida literária, editados pela Carambaia. A seleção do
material e sua tradução é de Jorge Bastos. A bela edição, limitada e numerada, é de 2021.