Lo-fi e os passarinhos

Ora, para que servem os passarinhos? Para voar, e para cantar! Também para afinar violas. O violeiro maravilhoso, Ivan Vilela, disse que, quando era menino, lá nas fazendas de Minas Gerais, não tinha um diapasão e ele afinava a viola com o canto do saci. Porque o saci canta em mi. Coisa bonita devia sair dessa viola de menino! Saci vive perto das lagoas de Minas e nunca ninguém o vê, só ouve. Ele canta a nota mi mil vezes seguidas, sem desafinar. É o mesmo matinta perera da música do Tom Jobim. Então, passarinho também serve para inspirar melodias. Até hinos, pois ouvi dizer que o Hino Nacional brasileiro saiu das notas do canto de um corrupião.

Passarinho serve também para inspirar lendas. O sacizinho mineiro do Ivan menino, na Amazônia, dizem que é a encarnação de uma mulher malvada que vem pedir tabaco para seu cachimbo. Nas noites de sexta-feira, conta um amigo manauara, todo mundo morre de medo do canto estridente do passarinho fantasma e grita: Vem amanhã que eu te dou tabaco! E de manhã aparece uma mulher toda esfarrapada na sua porta pedindo tabaco. Ai ai ai, a imaginação do povo!

Os passarinhos também servem para despertar pessoas. Aqui eles cantam e nos acordam ao nascer do sol. Cantam forte, formam verdadeiras orquestras sinfônicas, com uma partitura escrita pelo maestro Deus. Mas os humanos, pobres de nós, humanos, inventaram um novo tipo de música instrumental chamada lo-fi, que está fazendo grande sucesso entre pessoas mais distantes da natureza, que, de repente, descobrem que ela está ali e sentem saudades de algo que nunca existiu.

São gravações eletrônicas de cantos de passarinhos, para essas pessoas adormecerem, ou se acalmarem, se concentrarem, estudarem...
Também se usamos sons de ondas do mar, de vento...
Tanto passarinho cantando de verdade, tanto vento soprando...

Chuva, nem sempre, e ondas do mar só para uns poucos felizes que moram ou trabalham na beira da praia, e para gatos, ratos e cães de rua que nem prestam atenção ao murmurar das vagas. E as pessoas gostam da gravação desses sons. São boas as gravações, se você ouvir baixinho.

O princípio da coisa é a baixa fidelidade. Até a fidelidade está em baixa, arre! Ou seja, os restos de barulhos que precisam ser tirados da alta fidelidade. Isso é uma coisa muito complicada. Está cada vez mais difícil para mim entender o mundo. E salvar o mundo, como eu disse outro dia.

Sei que temos apenas doze anos para salvar o planeta, afirmam os cientistas. E acho que ouvir os passarinhos, a chuva, o vento, as ondas, faz parte dessa salvação. Sei também que o canto dos passarinhos foi criado por Deus quando criança: brincando de felicidade, dotou os passarinhos de seus pios e cantos. Sei de nada, estou em devaneios, sem saber o que digo. Mas sei para que serve uma crônica. Para fazer amizade, para sonhar... Esta aqui serve, também, para contar a história do menino que afinava a sua viola com o canto do saci que canta em mi mil vezes sem parar. Isso é que é uma amizade com a natureza, com o planeta, isso é que é delicadeza. Vamos todos afinar nossas violas em mi, pelo pio do saci.

Por Ana Miranda, escritora e Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, UFC