Novembro, 2021 - Edição 273
Quando choveu dinheiro
Um dia começou a chover dinheiro. Como sempre acontecia, os especialistas
mais especializados foram convocados. Economistas, meteorologistas e motoristas de
taxi criaram um Comitê Interdisciplinar para analisar e solucionar o problema. Eles
tinham que agir rápido.
A primeira chuva de dinheiro pegou todo mundo desprevenido. Numa quinta-feira de manhã de céu nublado, notas e moedas começaram a cair do céu. Como
sempre acontecia, os repórteres reportaram o óbvio. O Ministro de Finanças foi imediatamente entrevistado.
– “Ministro, por que está chovendo dinheiro? O que o senhor vai fazer?”
O Ministro respondeu sem hesitação:
– “Vamos imediatamente convocar um Comitê Interdisciplinar de Economistas,
Meteorologistas e Motoristas de Taxi para analisar e solucionar o problema”.
– “Mas, Ministro, chuva de dinheiro é problema ou é solução?”
– “Ah...minha filha, desculpe, mas estamos muito ocupados agora para dar atenção a essas
questões filosóficas”, respondeu o sisudo Ministro de forma muito séria.
Por sua vez, a população estava muito ocupada juntando panelas, bacias,
cumbucas, pratos fundos, banheiras de bebe, lençóis, plásticos, cuias, e outros receptáculos
e continentes de todas as formas, materiais e cores. O negócio era acumular capital da
forma mais eficiente possível.
Não é preciso ser economista, meteorologista ou motorista de taxi para prever o
que aconteceu em seguida: aquela injeção inesperada de recursos incentivou o
consumo de forma espetacular. Coisas estranhas começaram a acontecer. Os estoques
de receptáculos e continentes se esgotou nas lojas. Ruas e calçadas foram tomadas
por panelas, bacias, cumbucas, pratos fundos, banheiras de bebe, e afins. Cada metro
quadrado de área sem teto era disputado ferozmente. Ninguém foi trabalhar. Para que
trabalhar se chovia dinheiro?
Os jornais e revistas que prometiam explicações para o fenômeno se esgotaram.
Os jornais e revistas que questionavam as explicações se esgotaram. Os mais eminentes
economistas, meteorologistas e motoristas de taxi foram convidados para comentar o
fenômeno em todos os programas na TComo sempre acontecia, chovia de vez em quando. As chuvas eram aguardadas
com alegre ansiedade e entusiasmo. E eram seguidas por ondas frenéticas de consumo.
Como sempre acontecia, o ministro das Finanças era chamado para falar sobre produtividade,
balança comercial, taxas de juros, crescimento econômico, flutuações cambiais,
empregos, mas ninguém prestava a menor atenção.
Com o tempo, coisas mais estranhas ainda começaram a acontecer. As ações das
fábricas de receptáculos e continentes dispararam na Bolsa de Valores. Isso foi antes da
Bolsa de Valores fechar.
Depois que a Bolsa de Valores fechou, algumas pessoas começaram a questionar
sua própria noção de valores.
Uns achavam que o dinheiro se tornava cada vez menos importante. Outros
sugeriram utilizar os próprios recipientes como moeda, como tinham feito com cuias
no Haiti em 1812.
O tempo tem um jeito mágico para lidar com coisas estranhas, tornando-as
normais. Como dinheiro caía do céu, alguns se tornaram intensamente espirituais,
valorizando ideias como paixão, amor, família, amigos, crianças e filhotes de gatos e
cachorros.
Outros bradavam pela socialização dos receptáculos e continentes, sem explicar
como o produto das chuvas seria dividido. Outros planejaram em beneficio próprio
enormes esquemas industriais para coleta, distribuição e troca das abençoadas chuvas
monetárias, alegando “justiça social”.
O tempo não parava de passar ameaçando uma nova rotina de alegrias seguidas
por certo desespero. Os estoques de comida ficavam raros, os frutos apodreciam nas
árvores, o lixo se acumulava, era difícil circular pelas ruas entre tantos receptáculos...
Um dia começou a chover água. Especialistas foram convocados. Economistas,
meteorologistas e motoristas de táxi criaram um Comitê Interdisciplinar para analisar e
solucionar o problema.
A primeira chuva de água pegou todo mundo desprevenido. Numa quinta-feira
de manhã de céu nublado, gotas de água começaram a cair do céu. Como sempre acontecia, os repórteres reportaram o óbvio. O ministro de Economia foi imediatamente
entrevistado.
– Ministro, chuva de água é problema ou é solução?
– Ah... Minha filha, desculpe, mas estamos muito ocupados agora para dar atenção a essas questões filosóficas.
Enfim, o tempo normalizou tudo. O valor de receptáculos e continentes começou
a cair. A Bolsa de Valores abriu suas portas. Cada um recomeçou a captar dentro de seu
próprio continente suas noções de valores.
Ou não.
Enquanto isso, lá fora, começava a chover...