Janeiro, 2022 - Edição 275

Nuvens

Quantas vezes ouvi que eu era distraída, que andava com a cabeça nas nuvens, absorta em estranhos pensamentos. Estou mesmo debaixo das nuvens: algumas altas como cirros de gelo, outras mais baixas, numa arquitetura móvel de ondas levadas pelo vento fraco. De onde vieram, tão confusas e indefinidas? Do oceano? Da serra azulada? De alguma ilha ou fonte? São concretas, quase posso tocá-las, nesta tarde de verão.

Os poetas simbolistas foram chamados de “nefelibatas”. Cultivavam o vago, o aéreo, o oculto, o mistério, a ilusão das névoas e dos véus de noiva. Nefele foi uma nuvem mágica à qual Júpiter deu o aspecto da deusa Juno para enganar e punir o rei Ixião, um traidor incorrigível por natureza, que a desejava. Não era mulher, era nuvem em forma de mulher, mas daquela posse abrupta, gerou os centauros, que cavalgaram loucos pelos campos.

O poeta nefelibata foge do mundo para as nuvens que deslizam pelo céu. Talvez por isso Charles Baudelaire (1821-1867), em seu livro póstumo, Le Spleen de Paris, que reuniu movimentos líricos, pequenos poemas em prosa, escreveu em O Estrangeiro que não amava pai, mãe, irmã ou irmão, nem amigos, palavra cujo sentido lhe era obscuro; que ignorava a latitude em que estaria situada a sua pátria; que não se rendia à Beleza ou ao dinheiro; que a única coisa que amava eram as nuvens, as nuvens que passavam lá longe, muito longe, maravilhosas. Que incrível a realidade do peregrino que uiva para o infinito; que se recusa ao apego e à ligação com a matéria e foca no anseio de sua alma pela amplidão.

Já o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) assiste ao espetáculo da falange das nuvens maciças que se avolumam do lado das montanhas de Minas Gerais e afirma: “O poeta é um insubmisso e o mais são nuvens.” O poeta nunca se molda à injustiça. Mesmo nos poemas mais românticos existe um substrato social, um inconformismo com a realidade que o cerca. Na opressão, ele se lança no que há de mais imaginoso: a fantasmagoria das nuvens, com suas possibilidades de madrugadas, crepúsculos, tempestades, relâmpagos, arco-íris. Foi assim com o profeta que viu uma nuvem, do tamanho da mão de um homem, levantando-se do mar e acreditou que viria a chuva, derramada e copiosa. Uma nuvem negra, perfeita para provocar o espanto e o caos.

Às vezes, de tão descuidada que sou, uma nuvem enche a minha casa, o meu ser e habito nela como na própria glória. É tudo rápido e intenso. Se não fosse breve, eu não poderia suportar. Logo ela se afasta e eu choro muito.

Olho para as nuvens. Estão espessas. Vejo um homem sentado nelas com uma coroa de ouro e uma foice afiada nas mãos. Brilha, reluz, mas pode ser efeito do sol. De repente, voa em minha direção. Alguém então me puxa pelos cabelos e diz que eu não ande assim distraída, com a cabeça nas nuvens.

Por Raquel Naveira - Academia Sul-matogrossense de Letras.