Novembro, 2021 - Edição 273

Minas e as raízes do Movimento Modernista Brasileiro

A propósito do centenário da Semana de Arte Moderna, que ocorre no dia 22 de fevereiro de 2022, cabe rever a expressiva participação de Minas Gerais no Movimento Modernista Brasileiro. Esta história começa em 10 de junho de 1919 quando Mário de Andrade vem a Mariana para visitar o poeta mineiro Alphonsus de Guimarães, onde fora juiz municipal e já com fértil obra poética que lhe daria, muito anos mais tarde, o reconhecimento como um dos maiores poetas simbolistas brasileiros. Mário relata que “em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridão de sua sala de trabalho, sozinho e grande” e descreve seu encontro como “uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele”. Esta visita trará desdobramentos importantes na história, presença e influência de Minas Gerais no movimento modernista e no estudo, evolução conceitual e preservação da cultura brasileira.

Nesta viagem, Mário de Andrade, que lidera a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, conhece Ouro Preto e dirá que encontrou, “perdida entre as montanhas de Minas” e preservada, uma “cidade histórica, artística e cívica”. Em Ouro Preto e cidades históricas mineiras, o movimento modernista identificará os elementos de uma “autêntica arte brasileira”, com uma “autonomia cultural” nas Artes Plásticas, na arquitetura, no conjunto da “obra barroca mineira”, constituindo um excepcional surto de criatividade de artistas, mestres e artesãos, libertando-a dos cânones estéticos importados da Europa. Com o objetivo de mostrar as cidades históricas mineiras e seu esplendor artístico e cultural, Mário organiza, em 1924, a famosa caravana de modernistas a Minas, que assiste a Semana Santa de São João del-Rei, vai a Tiradentes e Ouro Preto. Integraram a caravana Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. E dirão que encontraram no século XVIII mineiro o “lastro cultural de uma identidade nacional”.

Já em 1920, Mário publica na revista Jornal do Brasil o ensaio “Arte religiosa do Brasil em Minas Gerais”, em que aborda a arte encontrada em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João Del-Rei. E diz que “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é amor à linha curva, aos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”. Em 1928, escreverá sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e sua obra, dando-lhes dimensão cultural excepcional, promovendo o início da divulgação do seu nome. Outros integrantes da caravana publicam trabalhos sobre a arte barroca mineira, despertando o interesse sobre Minas e motivando várias viagens de estudo às cidades históricas.

O mineiro Gustavo Capanema tornou-se, em 1934, ministro da Educação de Getúlio Vargas. O poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos líderes do Movimento Modernista mineiro, neste mesmo ano, muda-se para o Rio e ocupa a chefia de Gabinete de Capanema. Em 1935, Mário de Andrade, a pedido de Capanema, apresenta o anteprojeto do Decreto Lei 25, elaborado em sua redação final por outro modernista mineiro, Rodrigo Melo Franco de Andrade. O documento de Mário propõe a proteção do patrimônio cultural brasileiro e orienta a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que ocorre a 30 de novembro de 1937, por ato do presidente Getúlio Vargas. Com inspiração modernista, o patrimônio histórico e artístico nacional passa a ser definido como o “conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja preservação seja de interesse público, seja por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. O Movimento Modernista, incentivado também pelo centenário da Independência, em 1922, estimula o sentimento nacionalista e refirma a necessidade de o Brasil adquirir uma verdadeira autonomia cultural.

É tardio o despertar da consciência preservacionista brasileira em relação ao patrimônio histórico e artístico edificado. É a principal contribuição da Semana de Arte Moderna de 1922 e que se concretiza com o SPHAN a partir de 1937. Para realizar os tombamentos, a equipe do SPHAN pesquisará em todo o Brasil, começando pelas cidades e igrejas históricas mineiras, onde encontrará as “raízes de uma cultura brasileira original”, e com “uma originalidade nacional”, diferenciada da encontrada nos estados do litoral, bem anteriores ao surto artístico mineiro e tipicamente portuguesas. Mário e seus seguidores dedicaram-se, e especialmente os técnicos da então SPHAN, a buscar explicações para este fenômeno, que ocorre nos primórdios da sociedade mineira setecentista, como herança de uma rápida e conflitiva ocupação territorial provocada pela busca do ouro, do modelo de urbanização e um novo tipo de sociedade, a religião opressora da Contrarreforma e a atuação mais livre das ordens religiosas, as restrições opressivas do governo colonial português, os anseios de libertação e de liberdade, manifestos por uma constante rebeldia, e a consequente formação de consciência crítica decorrente da formação de uma elite que conhece a Ilustração e o Iluminismo que se alastram na Europa nos anos finais do século XVIII.

Forma-se, nas cidades históricas de Minas, “uma sociedade de pensamento”, que fala em independência e em república. Aponta-se ainda o surgimento de uma nova classe social, os mulatos brasileiros, de reconhecido pendor artístico, herança de sua condição social e racial. Mário de Andrade dirá (“Arte Religiosa do Brasil em Minas Gerais”) que “foi neste meio oscilante de inconstâncias – a Minas Gerais setecentista – que se desenvolveu a mais característica arte religiosa do Brasil. A Igreja pode aí, mais liberta das influências de Portugal, proteger um estilo mais uniforme, mais original que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião, nos outros centros”. E conclui: “As igrejas construídas por portugueses mais aclimatados ou por autóctones algumas, provavelmente como o Aleijadinho, desconhecendo o Rio e a Bahia, tomaram um caráter bem mais determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional.” Mário ressaltará a “opulência mineira no século XVIII” e a “carência paulista de bens históricos”.

O SPHAN descobre e relata trabalhos de grandes artistas do período, além de Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa, que vive de 1737/38 a 1814), entre eles Francisco Xavier de Brito, José Coelho Noronha, Francisco de Faria Xavier, Francisco de Lima Cerqueira, escultores e entalhadores, o arquiteto e pedreiro Manoel Francisco Lisboa, o pintor Manoel da Costa Athayde e muitos outros. Mas Minas desenvolvera outros expoentes culturais, resultado da libertação intelectual, na literatura, na música e, já no final do século XVIII, no pensamento político iluminista, que leva à Conjuração de 1789, antecipatória do pensamento de república e da independência, alcançada em 1822.

Será em Minas que a equipe técnica do SPHAN fundamentará critérios e soluções para intervenções preservacionistas e de restauração, nos elementos artísticos e estruturais das igrejas e construções mineiras coloniais. E realizará pesquisas históricas e avalições estéticas para os processos de tombamento de edificações e seus acervos, nas fontes documentais, livros das associações religiosas, irmandades e confrarias, câmaras municipais. E irá expandir extraordinariamente o conhecimento do processo histórico e das condições e fatores propiciadores do surto de criatividade artística e cultural do século XVIII mineiro. Pesquisa-se também os artistas mineiros, mestres pedreiros, construtores, escultores, pintores, ornamentistas, entalhadores, carpinteiros. Como também as origens estilísticas e as fases, transplantadas para Minas Gerais inicialmente por artistas portugueses, sob influência da Igreja Católica. Apuram-se as técnicas de intervenção e restauro, critérios de aprovação de projetos, a busca de soluções não desfigurativas do sistema construtivo, sempre objetos de muitos debates que envolviam não só os técnicos do SPHAN, mas também estudiosos da cultura brasileira e do fenômeno artístico e cultural mineiro.

Lourival Gomes Machado, estudioso do Barroco Mineiro, autor desta denominação, diz que “em Minas, no século XVIII, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma autêntica cultura brasileira”, com criatividade e expressões libertas dos estritos cânones importados da arte europeia. Estudos e interpretações mais recentes indicam que ocorreu nas cidades históricas mineiras, especialmente na antiga Vila Rica, “a terceira onda civilizatória das Américas, a primeira no México, com os astecas, na Península do Yucatane, a segunda, no Peru, em Lima, pelos incas, que foi sede do vice-reinado espanhol na América, complementadas pela cultura espanhola. O fenômeno mineiro possui similaridades com os outros: concorrem em Minas fatores como a povoação rápida e conflituosa pelo ouro, em ação pioneira na ocupação do interior do Brasil-Colônia, o insulamento geográfico em meio inóspito, os conflitos constantes pelo domínio territorial e resistência ao jugo português, o caráter ostentatório do barroco da Contrarreforma católica, conformando um caldeamento de condicionantes naturais e humanos. Serão estes condicionantes singulares de Minas Gerais que produzirão, já no século XVIII, também obras de literatura, música, arquitetura, pintura, escultura e, até nossos dias, a diversidade e a riqueza das artes das boas práticas do bem viver nos diversos ramos da cultura popular e folclórica, como a famosa culinária e o artesanato.

Já em 1733, na inauguração da Matriz do Pilar, em Vila Rica, a procissão de trasladação do Santíssimo, chamada de “Triunfo Eucarístico”, revela uma sociedade irrequieta, mas com gosto pelo suntuoso, pela ostentação e pelas exterioridades triunfalistas, típicas do estilo barroco da Contrarreforma, com que o catolicismo contrarreformista, aliado do Absolutismo, procura vencer o protestantismo e a descrença que já nasce com o iluminismo, que alimenta os embates entre a fé e a razão. Nos ornatos das igrejas, nos púlpitos e altares, nas esculturas ornamentais mas, e sobretudo, nas festas das irmandades e festivas procissões, que revela-se o barroquismo, que se torna “estilo de arte e de vida”, como nos descreve Affonso Ávila, mestre da decifração do Barroco Mineiro. Comprovam a “rebeldia” de uma sociedade nascente, praticando uma autonomia artística, em meio ao sentimento de liberdade e de autonomia.

Dá-se o “abrasileiramento” da produção artística, emancipatória nos seus partidos arquitetônicos, nos ornatos e soluções plásticas, nos elementos escultóricos, libertando-se do estilo jesuítico e do barroco Ibérico, com a presença dos primeiros “filhos da terra”, já libertos da escravidão, dedicados às profissões artesanais, em que demonstram excepcionais talentos. Expressão maior é Antônio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, que nasce de pai português e escrava negra, e que elevará a arte mineira a reconhecimento mundial. Em São Francisco de Ouro Preto, Aleijadinho marcará seu “estilo de passagem’, do Barroco para o Rococó. Para Mario de Andrade, “na arquitetura religiosa de Minas, a orientação barroca – que é o amor à linha curva, nos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem apenas na decoração posterior mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”.

Enfim, são considerações resumidas do fenômeno histórico, artístico e cultural mineiro, exaltadas pelo Movimento Modernista que, em fevereiro de 2022, comemora 100 anos da Semana de Arte Moderna e que Minas precisa reverenciar e exaltar.

Por Mauro Werkema, jornalista e escritor mineiro.