Janeiro, 2022 - Edição 275
A menina que espanava os livros do Imperador

Eram três meninas do Brasil: Isabel, Leopoldina e Rosário. Isabel e
Leopoldina eram irmãs, nascidas princesas, herdeiras do trono brasileiro.
Eram filhas do imperador Dom Pedro II. E havia Rosário, que também era
princesa, mas de outros costados, pois era filha e neta de reis africanos.
Nasceu na comunidade chamada Pequena África, no Rio de Janeiro. Sem
reino, no entanto, porque era escrava das meninas de pele branca e olhos
azuis. Rosário era uma menina singular até no nome que termina em o,
pouco comum nos nomes femininos no Brasil. Tudo nela era realmente
especial. Podemos até chamá-la de menina-prodígio, como veremos adiante.
Rosário é a personagem-narradora de Rosário, Isabel e Leopoldina –
entre sonhos e deveres, de Margarida Patriota (RJ: Pallas, 2021), livro encantador que em tudo lembra um conto de fadas. Na verdade, é um conto de fadas
das princesas do Brasil, Isabel e Leopoldina, que se casarão com príncipes
europeus e serão felizes para sempre.
A inteligente Rosário é filha e neta de negros. O avô fora rei na Grande
África congolesa; o pai, Tino, na Pequena África, comunidade do Rio de
Janeiro reduto de escravizados, na segunda metade do século XIX.
Margarida escreveu uma história encantadora sobre a vida das princesas, da infância à juventude, quando foram destinadas ao casamento. Como
contraponto à história das princesas brancas de olhos claros, colocou o
ponto de vista no olhar e participação da menina negra e escrava, Rosário. É
muito nítida a oposição entre os dois mundos, o das regras e etiquetas rígidas
do Palácio de São Cristóvão, residência da Família Real, e o do mundo das
festas e cantorias do reduto escravo e da dança chamada capoeira que, após a
libertação dos escravos pela princesa Isabel, em 1888, foi criminalizada pelos
republicanos da primeira hora. Rosário transita nesses dois mundos desde
pequenininha, nos quais se sente igualmente à vontade. Menina precoce,
interessa-se por tudo e surpreende o leitor por sua inteligência e discernimento.
No palácio, cai nas graças de todos e é encarregada de espanar os
livros da biblioteca do imperador, função que a encanta e desafia, não sem
antes ter cuidado da limpeza dos urinóis, das bacias de higiene e das escarradeiras.
Descobre agora os livros, cresce, torna-se madura e vê a vida com
outros olhos.
O livro de Margarida é dirigido ao público em geral, embora, à primeira
vista, possa caracterizar-se como infantojuvenil. Mas, repetimos, a leitura
prazerosa não tem idade. O aspecto didático fica por conta dos boxes com
esclarecimentos sobre fatos, lugares e personagens que povoaram a nossa
história, facilitando a compreensão para os mais jovens.
O tema desenvolvido pela autora é muito pertinente e atual, pois fala
de segregação, direitos e liberdade. E de bondade, enfatizada pela presença
do imperador como governante justo e humano, bem como a das duas princesas que alforriaram os trabalhadores negros, levando-nos a questionar o
trabalho escravo, adulto e infantil, que persiste vergonhosamente no Brasil
profundo de hoje. E a discussão necessária sobre a escolarização das crianças
que, na narrativa, passa em branco, restrita aos privilegiados. Por isso Rosário
nos encanta e surpreende ao buscar a própria instrução. Ao espanar os livros,
tira também a poeira dos olhos e vê surgir, por meio da palavra, as histórias
bonitas de Tristão e Isolda, Dom Quixote e a poesia de Camões, um mundo
distante que a faz sonhar e viajar. Não demora que som e letra se juntem e
ganhem significação, descortinando novos horizontes de deslumbramento
para a pequena Rosário, dando sentido ao seu desejo de ser livre e dona do
seu destino. Há entre esses dois universos um abismo, pois, enquanto Isabel
e Leopoldina têm o destino traçado, Rosário deverá traçar o seu. Vidas que
seguem paralelas e que constituirão a sociedade futura do nosso país.
A multitalentosa e premiada autora Margarida Patriota, que vai do
romance à poesia, da tradução impecável de autores ingleses e franceses à
literatura infantil, passando pelo ensaio, com trinta livros publicados, traz
agora esse pequeno romance delicado que nos leva à reflexão sobre a história
do país que, mesmo tendo sido governado por uma família imperial humanista,
o saldo é a desigualdade atual, em que as três meninas do Brasil, as três
graças, três pequenos corações inocentes que não se misturaram, não tiveram culpa.
A culpa está na origem. O que temos nessa história é um retrato
metafórico: enquanto as duas princesas posavam para Biard, o pintor francês
cheio de erres, a menina negra destronada assistia à cena como cuidadora
delas. Não entrou no quadro.
História que cada vez mais precisa ser revista para que todas as meninas do Brasil de hoje
saiam juntas, e bem, na foto.