Dezembro, 2021 - Edição 274

O segundo enterro do general Gudin

“Que romance foi minha vida!” Napoleão Bonaparte

Este 2021 assinala os 200 anos da morte de Napoleão Bonaparte, na prisão da Ilha de Santa Helena, em 5 de maio de 1821. Impressionante, a história de sua vida, que durou apenas 51 anos.

No último dia 13 de julho, a França recebeu os restos mortais do general Charles Étienne Gudin de la Sablonnière, que morreu em 1812, durante a fracassada campanha russa do imperador dos franceses. Aquela desastrada campanha, que redundou em tragédia, significou um enfraquecimento político e militar do imperador, nascido em Ajaccio, na Córsega. Carregaram o caixão do general, naquele 13 de julho, homens fardados de uniformes dos tempos de Napoleão Bonaparte, ao som de hinos marciais da época. O general Gudin (seu nome de guerra) pertencia à nobreza do Ancien Régime; era conde.

O último enterro do bravo militar terá como destino o célebre memorial dos Inválidos, em Paris, no próximo dia 2 de dezembro, aniversário da Batalha de Austerlitz, ganha por Napoleão e uma de suas mais fulgurantes glórias militares. O Cemitério dos Inválidos (ou Palácio dos Inválidos) é uma monumental necrópole militar que acolhe também os corpos de civis famosos.

O general Gudin morreu durante a Batalha de Valutina Gora. Foi atingido por uma bala de canhão. Suas pernas foram amputadas, porque gangrenadas três dias após os profundos ferimentos. Muito amigo do colega militar, membro de seu Alto Comando, Napoleão lamentou profundamente sua morte e escreveu uma carta de condolências à condessa viúva.

Após a morte de Charles Étienne Gudin, seu coração foi retirado e se encontra no célebre cemitério parisiense Père-Lachaise. O general recebeu do imperador a Grande Cruz da Legião de Honra. O nome completo do general Gudin (nascido em 1768, um ano antes de Napoleão) está inscrito no Arco do Triunfo. Quando morreu, ele tinha apenas 44 anos de idade.

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Voltemos à fatídica invasão da Rússia. No seu livro Napoleão – Uma vida, o britânico Vincent Cronin escreve: “Aqui, os ferimentos foram lavados com uma mistura de malvaísco e envoltos em compressas de vinho. Um braço ou perna gravemente estilhaçado tinha de ser amputado, ou a gangrena se instalaria. Durante a batalha e as doze horas que se seguiram, Larrey, o cirurgião principal, um homem dedicado de quem Napoleão gostava muito, serrou duzentos membros. Ele considerava essencial a amputação em 24 horas, ‘enquanto a natureza ainda está calma’. Os únicos auxílios eram um guardanapo para se morder, às vezes um gole rápido de aguardente.” (Editora Amarilys, São Paulo, pág. 320.) Mais adiante, na mesma página, Vincent Cronin relata:

“Em Borodino, as perdas russas em mortos e feridos foram de 44 mil – apenas 2.000 haviam sido feitos prisioneiros; as baixas francesas foram de 33.000. Aritmeticamente, e considerando que a estrada para Moscou agora estava aberta, Borodino foi uma vitória francesa, mas não foi uma vitória esmagadora como a que Napoleão estava esperando.

Sem dúvida, havia custado a Napoleão um grande número de oficiais veteranos, incluindo quarenta e três generais. Foi, ele considerou, a batalha mais terrível que ele já lutara.” No seu longo e generoso testamento, Napoleão deixou 100.000 francos para o cirurgião-mor Larrey, por ser “o homem mais virtuoso que conheci”.

Cumpre registrar neste artigo um trecho de outro ilustre historiador. Refiro-me a Nigel Nicolson e seu livro Napoleão: 1812, edição brasileira da Nova Fronteira, Rio, 1987. Ali, na pág. 92, o leitor encontrará esta passagem impactante:

“Muito diverso foi o destino, muito diversa foi a história do general Gudin, ferido de morte em Valutina. Foi trazido, agonizante, para Napoleão, em Smolensk, com as duas pernas dilaceradas. Todo o exército pranteou-o quando foi enterrado na cidadela.

Ségur disse dele: ‘Era justo, amável, competente e honrado – uma combinação rara numa época em que, com muita frequência, os homens de bom caráter não possuíam competência, e aos homens competentes faltava a menor moralidade.’ Foi o primeiro general do Grande Exército a perder a vida naquela campanha.” Os russos incendiaram Moscou e outras regiões do país, dificultando a ação dos invasores. O intenso frio de até 20 graus negativos (o chamado General Inverno) e a fome colaboraram para o fracasso da campanha napoleônica.

Depois da derrota, Napoleão e assessores próximos bateram em retirada para Paris. Partiram de Smorgony, além do rio Berezina. Passaram por Vilna, Varsóvia, Dresde, Meinz. No início da dramática viagem na neve e sobre o gelo, usaram três trenós. Num deles, iam o imperador e, a seu lado, o general Caulaincourt, duque de Vicenza. Para despistar, Napoleão passou a ser o conde de Reyneval, auxiliar do duque. O grupo de fugitivos viajou também em caleche, landau, cabriolé e, finalmente, numa tosca, incômoda, pesada e lenta carruagem do Correio. Foi assim que eles chegaram a Paris, na noite de 18 de dezembro de 1812. Foram treze dias de dura viagem até o Palácio das Tulherias. Estavam todos irreconhecíveis e estafados. No Memorial de Santa Helena, Napoleão admite os erros estratégicos que cometeu na imensa Rússia, especialmente em Smolensk, esperando o armistício que não veio, da parte do czar Alexandre, mas culpou as condições climáticas.

Apesar de algumas vitórias, o imperador perdeu a Batalha de Leipzig ou Batalha das Nações. Pressionado, abdicou em Fontainebleau. Foi exilado na Ilha de Elba, de onde fugiu e retomou o trono. Foi o chamado Governo dos Cem Dias; segundo Vincent Cronin, na verdade 136 dias.
Recomendo aos eventuais leitores deste artigo mais um livro, desta vez Napoleão – Uma biografia política, de Steven Englund. Ali, na pág. 414, encontramos:
“Napoleão comentaria em Santa Helena (não uma, mas várias vezes): ‘Eu deveria ter morrido em Moscou. Nesse caso teria provavelmente tido a reputação do maior conquistador de todos os tempos. Depois (de Moscou) a sorte deixou de me sorrir.’” (Rio, Zahar, 2005.)

Depois veio a grande derrota de Waterloo, em 1815. Napoleão, forçado a abdicar, tornou-se prisioneiro dos ingleses, a bordo do navio de guerra Bellerophon, com 74 canhões. Pensava que seguiria para o exílio na Inglaterra, segundo seu pedido de asilo ao governo inglês, mas seu destino seria a longínqua Ilha de Santa Helena. O destronado imperador foi transferido, irado, para o HMS Northumberland, uma grande fragata de guerra sob o comando do almirante Cockburn. Fora condenado a um exílio perpétuo num rochedo fantasmagórico de ventos e chuvas cortantes.

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Santa Helena, uma ilhota perdida no Atlântico Sul, entre o Brasil e a África. Uma ilhota de altos penedos, castigada pelos ventos e pelas chuvas. “Aquela rocha abandonada”, na expressão de Vincent Cronin. Na verdade, um pequeno posto militar inglês, com guarnição e dezenas de canhões. “Esta é uma ilha desgraçada, uma prisão”, esbravejou Napoleão, quando lá desembarcou. Era mesmo, e ele sabia que só por milagre fugiria daquele inferno patrulhado dia e noite. Longe de Marie Louise, longe do filho ainda criança, cercado de sentinelas o tempo todo, implacavelmente. Para piorar, o prisioneiro criou vários casos com o governador da ilha, o oficial inglês Hudson Lowe, futuro Sir Hudson Lowe, que se tornou seu carrasco, seu Sanson sem a guilhotina.

O exílio prisional na inóspita e soturna Santa Helena, numa modesta casa de fazenda, com curral e tudo, no distrito de Longwood, longe da França 8 mil quilômetros, foi um terrível castigo para o antigo tenente corso, o Petit Caporal que estudara na Escola Militar de Brienne. Ele perdera o trono, o Império, a mulher e o filho, mas não a glória. Contudo, ele ainda tinha esperança de sair dali. Passou a usar, às vezes, um grande chapéu de palha e inventou criar ovelhas e plantar árvores e um jardim, para se lembrar do palácio de Malmaison e dos belos jardins da primeira mulher, Josephine, que morrera em 1814. Era preciso encher o tempo, vencer o ócio. Ditou então suas memórias e testamento ao Conde de Las Cases e a outros assessores, como Montholon, Bertrand e Gourgaud.

“As nuvens passam tão baixo por cima dos rochedos de Santa Helena que as extremidades aderem a eles como véus brancos de fantasmas”, escreve o escritor russo Dimitry Merejkovsky (1865-1941) à pág. 107 de sua biografia Napoleão. Ele acrescenta, a seguir, que Santa Helena é “o túmulo onde o enterraram vivo”. Por sua vez, em seu Napoleão – Uma biografia ilustrada, André Maurois escreve, à pág. 142:
“Algumas vezes, em Santa Helena, naquele deserto de amargura e tédio, desejou ter morrido em Moscou. ‘Sire’, respondia Las Cases, ‘a história ficaria privada do retorno de Elba, o mais heroico ato que homem algum jamais realizou…’ ‘Eh bien’, diz o Imperador, ‘imagino que tenha havido algo de valor naquilo. Mas digamos Waterloo…

Era lá que eu devia ter morrido.’ Esses construtores de glória desligam-se da própria existência, pairam acima dela e só a veem como obra de arte. Mas Napoleão, em seus dias de perfeita lucidez, sabia que Santa Helena era o sórdido, o sublime e o indispensável epílogo de sua história. Ao perder uma jogada, ganhou o jogo. O túmulo do Imperador, na cripta de Les Invalides, permanece para os franceses um lugar de peregrinação, e não só por causa de Arcole, de Austerlitz e de Montmirail. A França moderna sabe que foi modelada por essa bela mão.” (São Paulo, Globolivros, 2013.) Foram cinco anos e meio de sofrimento e meditação. As gerações futuras também meditariam sobre Santa Helena, sobre o poder e a queda, o fastígio e a derrota, a ambição e o abandono. Sobre o melancólico fim de um homem que forjou sua epopeia. Por isso, o biógrafo Jean Paul Kauffmann escreveu: “Não visitamos Longwood; Longwood nos visita.”

A morte viria em 5 de maio de 1821. O médico, Dr. Francesco Antommarchi, um corso de apenas 33 anos, tido como grosseiro, e a quem o imperador detestava, gentilmente fechou os olhos do famoso morto e parou o relógio. Eram 17h49, e o sol melancolicamente descaía sobre a desolada ilha atlântica. Chovia naquele dia. E à tarde a chuva se transformou num medonho temporal. O Dr. Antommarchi, perito em autópsias, constatou no estômago do imperador uma úlcera cancerosa bastante extensa, que nunca fora devidamente combatida. Mas a hipótese do envenenamento por arsênico, a mando dos Bourbons, persiste até hoje, e bem latente no imaginário popular.

Napoleão Bonaparte foi enterrado no dia 8, em cova simples, com uma grande pedra por cima, sob o olhar inamistoso do governador militar Hudson Lowe. Houve uma singela cerimônia religiosa. Lowe perguntou ao general Bertrand se desejava dizer algumas palavras, mas ele estava muito consternado e declinou do honroso convite. Ocorreu uma modesta cerimônia militar por parte dos soldados ingleses, com bandas tocando músicas fúnebres e com disparo de três salvas de mosquetaria.

Naquela tarde, um navio de nome Heron foi despachado para a Inglaterra, levando a notícia da morte e sepultamento do célebre prisioneiro. Só em 1840 seus restos mortais seriam levados para Paris, onde se realizou um majestoso funeral de Estado, sob o governo do rei Luís Felipe. O sóbrio e elegante túmulo do imperador está no complexo mortuário dos Inválidos. Não há registro de seu nome. Não é necessário. Só há esta inscrição: L’EMPEREUR. Todos sabem quem eternamente repousa ali.

Assim, o general Gudin e o general Bonaparte, seu comandante, se encontrarão novamente, agora nos Inválidos. Eles terão, portanto, dois enterros, sob as Águias gloriosas, dos tempos em que o sol brilhava em Austerlitz, Wagram e Marengo.

Por Danilo Gomes - Da Academia Mineira de Letras.