Novembro, 2021 - Edição 273
Miguel e Maria
Que bom que você chegou, Maria! Os dias aqui não são dias. Então,
não faz tanto tempo que nos despedimos. O tempo aqui não é o tempo.
E os espaços são todos. Aqui, Maria, somos nós. E é o que basta.
Tudo que não era nosso ficou e você sabe que não faz falta.
Antes de você chegar, Maria, você já era daqui. Os sinais da sua paz
eram sinais daqui para acalmar os arroubos dos que não compreendem
o que fica e o que vai.
Sentada na mesa da cozinha, você brincava de limpar o mundo no
dobrar das sacolas que traziam a comida. Brincava de disfarçar o tempo
organizando a vida.
Quando nos conhecemos, você, tão jovem, já emprestava mansidão. Eu era mais agitado. Impressionava você decorando os nomes das
ruas. E os seus significados.
Você deu significado a mim, Maria. Dormir e acordar com você era
uma rua sem fim de felicidade. E vieram os nossos filhos. E uma filha
se foi e nos deixou partidos. Eu, em pedaços. Você, inteira. Seus olhos
lacrimejavam saudade e acendiam a fé de que os mistérios são véus e
não desaparecimentos.
Regina, nossa filha, está aqui, Maria. E, também, os outros. Os seus
olhos tão abertos prosseguirão enxergando. O corpo descansa, e a alma
voa no interior da bondade perfeita. E de nada mais você precisa. E de
nada mais preciso eu.
A bondade ilumina o mundo, todos os dias, mas há os que desacreditam. E, então, lançam gritos de inumanidades. A bondade prossegue sem retroceder. É água limpa oferecida a quem percebe, a quem se
dispõe a se alimentar e a alimentar os seus irmãos de cuidado. Você não descuidou de ninguém, Maria. Seu nome já foi um prenúncio. Do silêncio. Da prontidão. Dos ouvidos atentos ao clamor de uma humanidade
melhor.
Foram quase cem anos de presença. De um dormir e acordar
acompanhada da disposição de não desperdiçar amor. É o que fica,
Maria. É só o que fica. Você se lembra dos poderes que eu tive? Das
homenagens? Dos cargos? Tudo tão distante daqui! Tudo inventado para
distrair. A distração também faz parte. Só que parte em pedaços o que
deveria ser inteiro. E é assim que nos olhamos no espelho da vaidade e
não enxergamos ninguém. Porque ali ninguém mora.
Você dizia, no silêncio, que me amava sem os enfeites. E eu compreendia. E agora, Maria, estamos aqui. Nos completando, novamente,
no completo do existir. Nada mais é preciso dizer. Basta sentir. Venha
dançar comigo, Maria, a dança que nunca acaba. Ouça a canção do
encontro. Toque na imaterial memória do que sempre fomos. Prove da
matéria-prima de que fomos feitos.
Sabe, Maria, você sempre soube. Você nunca duvidou. Os seus
ditos diziam, antes, o que há por aqui. Sem exigir concordâncias. Cada
um tem o seu tempo do acreditar. Aqui o tempo é inteiro. Ah, se soubessem por lá o que é a felicidade, as águas do esquecimento fariam perdoar
os desacertos e a liberdade seria a compreensão do que fica quando tudo
passa. E tudo passa!
Que bom que você chegou, Maria! Por aqui, só fica o que permanece.