Novembro, 2021 - Edição 273

Meia noite

Quase meia-noite. Aguardo essa hora mágica, em que o relógio soará as doze badaladas. O pêndulo oscilando entre o hoje e o amanhã, a treva e a luz, a vida e a morte.
Qual Safo de Lesbos (625-580 a. C.), a maravilhosa poetisa do mundo grego antigo, percebo que a lua já se pôs, as constelações também, que a hora passa e que estou deitada sozinha, nesta noite de verão, como ela, há dois milênios, numa ilhar do mar Jônio.
Quase meia-noite. Meia-noite é o marco zero. Fim de um dia, começo de outro. Essa é uma convenção de origem romana. Plutarco comentou que, sem ela, não haveria como definir a duração de um dia. Os raios de sol na madrugada e no poente seriam marcadores instáveis. À meia-noite, correrei para a rua. A carruagem passará para me levar. Nela estará o meu noivo. Atravessaremos campos e mares até avistarmos um castelo suntuoso, onde acontecerão nossas bodas. O amor até a consumação dos séculos.


À meia-noite, como num filme, conhecerei um grupo de estranhos, de grandes nomes da literatura e das artes plásticas, que me levarão para uma viagem ao passado. Estou cada vez mais insatisfeita com o presente, com uma sensação constante de aflição e mal-estar. Insuportáveis para mim os temas contemporâneos. Em breve, serei transportada para Paris dos anos 1920, época de ouro e charme. Conversarei com Gertrude Stein e Salvador Dali. Entrarei nas telas de Matisse e Degas, como uma bailarina vestida de rosa e azul.

À meia-noite, terei que fugir, sair da festa, deixar meu sapato de cristal no degrau da escada. Um rastro de mim. Há pouco, eu dançava ao longo do abismo de estrelas. Agora, perambulo pelas esquinas dessa grande cidade em andrajos. Quem sou na noite alta? Não creio que eu seja, mas perduro como fantasma na memória, engolida pelas brumas. À meia-noite, sairei pelo Egito recolhendo os cadáveres dos primogênitos.

Observarei a troca de guardas nas guaritas do deserto, de onde virão os tártaros. Num abrir e fechar de olhos, cântaros se quebrarão em estilhaços de barro. Eu me deitarei toda perfumada aos pés do meu amado e pedirei que me resgate das mãos do inimigo. Cantarei tão forte que os grilhões da masmorra se partirão. Enfim, ficarei livre. Espero de olhos abertos a chegada da meia-noite. Meia-noite em ponto. A hora exata.

Por Raquel Naveira é da Academia Sul-matogrossense de Letras.