Novembro, 2021 - Edição 273
Em Diamantina
“O passado é um palácio construído dentro de cada um de nós, cheio de gavetas
onde guardamos nossas memórias.” (Ana Miranda, na crônica “Quando o passado retorna”.)
E eis que são dez horas da manhã de uma segunda-feira de março do ano 2000.
É meu último dia em Diamantina, de uma temporada de cinco na Pousada do Garimpo.
Adeus, breves férias!
Conheci a cidade em 1991 e me encantei. Hospedei-me, então, no Grande Hotel,
projetado por Oscar Niemeyer, a pedido de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Voltei quatro anos depois, para os festejos do centenário dos diários de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Brant), publicados em livro em 1942, sob o título de Minha Vida
de Menina (que muito tempo depois daria um filme). Foram três ou quatro dias de celebrações, com a presença da filha da autora, Sarita Brant (moradora do Rio), do escritor
Eduardo Almeida Reis (filho de Sarita), do bibliófilo e escritor José Mindlin e de outras
ilustres pessoas.
Quem vai a Diamantina, vindo
do Rio, Brasília ou São Paulo, passa por
Curvelo, terra natal do romancista Lúcio
Cardoso (Crônica da Casa Assassinada).
Na outra banda, pode passar pela cidade
do Serro. De Curvelo até o antigo Arraial
do Tijuco, o viajante, atravessando as chapadas, começa uma incursão ao passado,
ingressando lentamente no século XVIII.
Quando chega à cidade, sente-se na época
dos contratadores de diamantes, dos compradores de ouro, das belas damas debruçadas nas sacadas dos sobrados; quer logo
conhecer a casa da célebre mulata Chica
da Silva, a Chica-Que-Manda, por quem
se apaixonara o todo-poderoso contratador João Fernandes de Oliveira; quer logo
entrar numa igreja para rezar e admirar
as belezas da talha e da pintura, da nave central e da sacristia. Lá fora, o sol é uma festa
de luz sobre o casario colonial de cores vívidas, sobre as igrejas alegres como pequenos
templos japoneses.
Das cidades mineiras do ciclo do ouro e dos diamantes, Diamantina é a que
conta com o barroco mais festivo, com a arquitetura de cores mais jubilosas, com igrejas
e capelas que, pelos sinos, parecem chamar alegremente os penitentes e fiéis em geral,
sem aquele sombrio, pesado e solene ar de suas congêneres de outras cidades da mesma
época.
Na verdade, Diamantina tem um casario e uma arquitetura sacra servidos por
tons vivazes, alegres, joviais. Creio que Mozart amaria essa cidade rica em escala cromática, inspiradora de sonatas, adágios e minuetos. Sim, Diamantina parece-me uma
cidade mozartiana, uma luz na manhã, um piano na tarde, uma seresta na noite. Que
luz, que cores, que praças para o namoro e a conversa fiada, que ruas e becos cheios de
surpresas, como um livro de gravuras antigas!
Cidade da valsa vienense, da vesperata famosa e da serenata ao gosto dos mineiros, não surpreende que Diamantina tenha dado ao Brasil o simpático Presidente pé-de-
-valsa e seresteiro com alma de poeta, o famoso JK. Dá gosto ver a singela casa em que,
menino pobre, ele passou a infância: pequena, branca, com portas e janelas daquele
azul colonial.
Andar pela cidade, percorrer ruas, becos, praças, ladeiras, é um prazer inesquecível. As sacadas floridas são do tempo das sinhazinhas em flor. É bom percorrer a Rua da
Quitanda, ver o sobrado do Padre Rolim (personagem da Inconfidência Mineira); parar
diante do pobre chafariz, de 1787, da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos;
contemplar o famoso passadiço da antiga Casa da Glória, de azuis janelas sobre o branco da fachada. A torre da Igreja de São Francisco de Assis, branca, vermelha e marrom,
parece emergir de um conto de Hans Christian Andersen. O Beco do Mota, reduto da
antiga boemia e de mulheres-damas, é hoje apenas uma ladeira de pacatos solares com
românticos lampiões.
As igrejas são de um barroco de contos de fadas, singelas, leves, alegres: Carmo,
Catedral (antiga Sé), Rosário, São Francisco, Capela Imperial do Amparo (da festa do
Divino), Capela do Senhor do Bonfim, Luz, Mercês, Basílica do Sagrado Coração.
Mas o turista, o visitante, tem mais com que se encantar, perambulando de
mãos nos bolsos ou fotografando para a posteridade: o Museu do Diamante, o Mercado
Municipal onde se toma uma cerveja bem gelada, uma cachaça de primeira e se comem
uns tira-gostos que são um pitéu. Até o delicioso chouriço! Por falar em cerveja gelada e
bons acepipes, ontem à noite voltei ao Bar do Morfeu (perto da Pousada do Garimpo),
na Avenida da Saudade, 265. Morfeu é o apelido de infância de Antônio Dornas Vieira, de
quem fiquei amigo desde viagem anterior.
Você tem mais, em Diamantina. Vá andando pelo prazer de perambular: a Casa
do Fórum é uma bela e imponente edificação da era colonial, a casa do Intendente
Câmara não fica atrás, mais o casarão da Prefeitura e Câmara Municipal e a antiga
Intendência dos Diamantes.
Vosmecê, turista acidental, tem ainda a Santa Casa, o Palácio Arquiepiscopal
e o Biribiri, que é um bairro retirado, um conjunto colonial com a tradicional Fábrica
de Tecidos Biribiri, inaugurada em 1876 com o intuito de beneficiar moças e meninos
carentes de recursos.
A casa com muxarabi, na Rua da Quitanda, é aquela do balcão fechado em uma
de suas sacadas, uma rara reminiscência da influência árabe nas construções luso-brasileiras, um dos muitos temas do agrado do grande sociólogo e escritor Gilberto Freyre.
***
Mas voltemos, no trem de ferro do tempo, ao ano de 2000, quando o mundo não
acabou. Como eu ia dizendo, é meu último dia na cidade encantadora.
Um sol bom e manso ilumina todo o centro da cidade e eu sou como um vagabundo que, de mãos nos bolsos e sem compromisso algum, sem agenda, bate pernas
pelas ruas, ladeiras e becos, zanzando e bestando.
Ao redor da cidade – o antigo e histórico Arraial do Tijuco- , o majestoso espetáculo das serranias de pedra, que encantam olhar do viajor. Sem eira nem beira, vejo
uma porta aberta e entro, que nem cachorro sem dono. Estou no Café à Baiúca (Rua da
Quitanda, esquina com a Rua Campos Carvalho), onde peço um café e um pão de queijo
recém-saído do forno.
Aventureiro, pobre turista acidental, volto para a rua “banhada de sol”, como diria
Tom Jobim. Pequenos grupos de homens conversam, fazem negócios, olham as mulheres que passam, falam mal do Governo, em frente a esse Café, que é um ponto nevrálgico
e político, central, da cidade de Chica da Silva, Joaquim Felício dos Santos, JK, Ayres da
Matta Machado Filho, Edgard de Godoy da Matta Machado, Helena Morley, Affonso
Heliodoro dos Santos, Vera Brant, Serafim Jardim (proprietário da Pousada da Serra) e
tantos outros ilustres mineiros.
Fico em frente ao Café, olhando os velhos sobrados de cores alegres. E eis que sou um homem feliz,
louvado seja Deus, debaixo desse
sol brando, com o povo passando à
minha volta. Tudo é luz, som e movimento. A felicidade é esse momento
bom, mágico.
***
Tenho muitos recursos à mão.
Se passar mal, tenho à minha frente a
Drogaria Saúde & Vida. Se carecer de
uma hospedaria, ali está, acolhedora
e florida, a Pousada Beco do Mota.
Para dor de cabeça, cólica ou ressaca,
ali está, também prestimosa, a tradicional Drogaria Diamantina. Se me
der vontade de alimentar a fome do espírito, ali adiante me aguarda a Diadorim – Livros
e CDs. Para souvenirs, a tradicional Boutique Cyrillo. Se quiser papel de carta ou envelope para mandar um postal a parentes, amigos e benfeitores, a Papelaria Tejuco oferece
bons serviços a preços módicos.
Se eu quiser comprar relógio novo a preço justo, é só entrar na Relojoaria Omega,
onde posso fazer um bom negócio e até ficar amigo do proprietário. Minha barba está
grande de quatro dias, meu cabelo já está com jeito de juba? Ali está o tradicional Salão
do Magno – Barbearia – o cidadão sai de lá bem escanhoado, mais novo e ainda por cima
perfumado com razoável água-de-cheiro.
Necessito de fogão novo, linha moderna, com até seis bocas? Posso encomendá-
-lo ali em frente, na bem sortida Loja dos Fogões, em prestações a perder de vista.
Meus sapatos estão gastos, cambaios, com cor de burro fugido? Ora, ali em frente,
“pertim” da Catedral, encontra-se estabelecida a renomada Sapataria Jaimis, que oferece
preços de ocasião, sim, senhor.
***
Prossigo na andança de curioso. Alguma necessidade caseira, coisas para o lar?
Não preciso ir longe: bem adiante está a Mercearia Tem Tudo, com grande sortimento de
mantimentos, a preços populares.
Revelar filmes da viagem? A Fujifilm tem tudo o que se refere a esse ramo de
comércio.
A fome apertou, caminhante? O Restaurante Grupiara servirá os mais saborosos
pratos mineiros (ah, o frango ao molho pardo, com angu!), o mesmo acontecendo com
a tradicional Cantina do Marinho, próxima à Catedral e onde se come uma das delícias
das Minas Gerais, que é o ora-pro-nóbis com carne moída, arroz, feijão e angu, com um
ligeiro toque de pimenta malagueta. O próprio Marinho (que é irmão do mencionado
Morfeu) recomenda sua célebre bacalhoada, com ele no comando das panelas e caçarolas.
É um chef-cozinheiro de mão cheia.
Se me vier – como sempre veio – uma súbita vontade de rezar e pedir perdão a
Deus por meus muitos pecados, posso entrar na Catedral, onde meu inquieto espírito e
meu desassossegado coração irão encontrar perdão e refrigério. Deus é perdão.
E eis, portanto, que não me falta nada, nesta cidade cuja mística se sente na luz
ticianesca que a envolve, sim, nesta bela cidade que é uma relíquia viva do barroco
setecentista, alegre como uma sonata de Mozart. Já prestes a partir de volta à Brasília
do século XXI, ocorre-me uma cintilização lírico-filosófica do mago Guimarães Rosa em
Tutameia: “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido.” Aplica-se ao meu caso de
turista acidental neste antigo, histórico, amado Tijuco que Helena Morley tanto amou.
Estou ali descuidado, um estranho, um anônimo – e, por isso, feliz no vaivém da multidão.
Contemplo tudo com um nostálgico olhar de despedida. Chego aos portais da
emoção, mas, temeroso de ceder aos primeiros acordes de um indesejado pieguismo,
volto a integrar-me ao bulício daquele logradouro da comunidade diamantinense ao sol
da manhã. Nada me falta nesta praça do Café à Baiúca, onde sou um caminhante feliz,
de mãos nos bolsos e alma encantada de menino descobrindo o mundo.