Novembro, 2021 - Edição 273

A carta da fome

Huang Tung foi sempre um homem bom.
Bom que nem fruteira carregada de frutos maduros em beirada de estrada que é terra de todos. Bom igual a planta de flor perfumada que enfeita o percurso do peregrino à procura de um lugar sagrado. Bom feito o tempo quando abençoa com chuva as plantações de arroz. Dividia o que possuía e tinha os braços abertos para somar a satisfação da vida com os amigos na aldeia. Nunca estava só nas ruas, sempre havia alguém a seu lado, alegre em sua companhia.
Diziam os amigos que Huang Tung tinha três corações. Um coração trabalhador sempre pulsando, pois trabalhava muito, na lavoura, na pesca, no artesanato e em casa. Gostava de trabalhar. Um coração generoso e musical, semeando melodias em seus olhos e gestos bons no convívio com todos.
E um coração silencioso, guardado para pulsar quando Hung Tung encontrasse sua amada, pois era verdade dentre as verdades que ele ainda não encontrara o que mais queria na vida, o melhor da vida para um homem, uma boa esposa com quem em harmonia compartilhasse a existência.

Huang Tung não se amofinava. Sabia que na hora certa seu coração silencioso pulsaria. Quando? Isso não sabia... Eis que um dia dura seca tomou conta das terras de sua gente, ameaçando o povoado e o povo com fome no porvir. Huang Tung, triste, via o chão dos campos de arroz coberto de palha morta.
O que fazer? Que fazer?
Dividia o arroz que possuía, mas isso não molhava a terra. Via o céu sem nuvens e o sol dourado feito ouro, lindo, cruel. E a vida prosseguia com tensão nos corações. Huang Tung não perdia a coragem da esperança. Todo dia bem cedinho encarava o firmamento que teimoso negava a abençoada chuva.

Tinha provisões em casa, certo que escasseavam. Contudo, o que mais temia era que seu coração, seu coração generoso, se esquecesse de pulsar, de semear melodias, olhos vivos, gestos bons no encontro com todos.
Eis que um dia à noitinha, sem dizer de onde vinha, chegou a sua casa uma velha em pele e osso que nada disse ao chegar. Apenas permaneceu em pé na porta olhando os olhos de Huang Tung. – Entre... entre... Não se chega em paz na porta de alguém sem entrar – disse à visita que também tinha bons olhos, apesar da aparência esfomeada. – Onde moro há sempre espaço para quem vem – adiantou Huang Tung.
– E há comida também? – perguntou a visitante.
– Sim! Claro que tem! Tenho o que tenho e já finda, mas onde me alimento, enquanto tem o que tem, há também para quem vem – pulsou o coração generoso do anfitrião.
Trouxe um tanto do que havia em casa, pôs sobre a mesa e os dois se alimentaram juntos.
– De onde vem? – quis saber Huang Tung.
– De todo lugar. Sempre chego onde me esperam. Às vezes para o bem. Às vezes para o mal – informou a visita.
– Seja como for, prossiga se alimentando, pois vejo que a senhora tem fome – acrescentou Huang Tung.
– Sim. Esse é meu nome atual. Chamam-me Fome. Mais me agrada quando sou chamada de Fartura, vez e ocasião em que me apresento bela, com outro coração.
Huang Tung estranhou a conversa, mas pouco se importou com a estranheza do nome da velha. Naquele instante, o importante era pôr fim à fome da senhora Fome.
Trouxe mais comida para a mesa.
– E o que trouxe a senhora até nossa aldeia esta noite? – catou coragem e perguntou à visitante.
– Confesso... confesso... venho aqui para mudar de nome!
– Que bom! Que bom! – animou-se Huang Tung. – Que bom que é assim e que assim acontece em nossa aldeia. Seja bem-vinda. Que eu possa ajudá-la a mudar de nome!
A velha senhora prosseguiu comendo até fartar-se.
Alimentada, sorriu feliz:
– Confesso que cheguei conforme cheguei, mas vale esclarecer que foi o senhor quem me trouxe aqui.
– Eu? Custo a crer! A bem da verdade só agora estamos nos conhecendo...
– Mas sempre reconheci sua bondade... – completou a visita com certa satisfação no olhar.
Levantou-se pronta para sair.
– Não quer ficar? Passar aqui a noite? Não é hora de seguir viagem!
A escuridão da estrada guarda consigo o desconhecido que às vezes traz temor a quem viaja – ponderou Huang Tung.
– Mais vale a coragem que advém da bondade. Somos o que colhemos com aquilo que plantamos. Tranquila, pela manhã estarei aqui de novo, também bem-vinda – despediu-se a visitante.
Na porta da casa, antes de sair, ainda disse:
– Estou grata e, se tenho algo a lhe ofertar, é isso aqui. Esta carta com dizeres que já sabe, mais esta aliança que vai gostar de usar – e assim partiu, após entregar os presentes a Huang Tung.
Sem muito entender tudo do que havia acontecido, Huang Tung guardou a carta na gaveta da mesa de refeição e, no dedo indicador de sua mão esquerda, passou a usar a aliança.
Deitou e dormiu em paz o restante da noite.
Despertou na manhãzinha, acordado por voz na porta de sua casa.
– Senhor Huang Tung! Senhor Huang Tung! Acorde! Venha! Venha!
Venha ver a chuva que chegou e molha o arrozal – dizia quem chamava.
Abriu a porta e viu... Viu diante dele a mais bela jovem antes jamais vista por ele, tão bela quanto a chuva que via... e não viu só moça e chuva... pois igualmente viu no dedo indicador da mão esquerda da jovem uma aliança igual à que tinha em sua mão.
– É a fartura quem chega, senhor Huang Tung! Que bom! Que bom!
– adiantou-se a moça...
E o coração silencioso de Huang Tung pôs-se a pulsar, tão forte quanto o seu coração generoso, mais seu coração trabalhador.
Deveras houve fartura sem ameaça de fome no porvir.
E a vida prosseguiu pelo rodopio veloz das estações do tempo...
Faz tempo...
Faz tempo... Faz tempo...
E conforme o tempo segue outra história o tempo traz:
– Vovô! Vovô! Veja o que encontrei no fundo desta gaveta na mesa de refeição! – O pequeno neto correu ao encontro do velho Huang Tung que vinha do trabalho no arrozal da aldeia.
– O que é isso? O quê? – quis saber o avô, com suas fortes mãos levantando para o alto o menino todo alegre.
– Uma carta... Carta antiga... fechada e guardada há tanto tempo – respondeu o neto.
– Vamos ler... Vamos ler o que nos diz... – concordou Huang Tung e satisfez à criança.
Leram com certo vagar:
“A bondade dos homens atrai a bondade dos céus. É sábia a natureza que bem reconhece o que merecem os homens por conta de seus feitos. Assim a natureza observa os homens. Se encontra bondades, é boa e generosa. Se encontra ganâncias, é avara de bondades, dá rasteira nos gananciosos, levando-os de volta à miséria mal dobram esquina na estrada da existência. Verdade que o tempo sempre ensina, por mais que só poucos aprendam.”
Prosseguiram pulsando os três corações de Huang Tung bem além desta história.

Por José Arrabal - Membro-correspondente da Academia Espírito-Santense de Letras (AEL).