Outubro, 2021 - Edição 272

Por que ler Grande sertão: Veredas?

Em tempos de discussão sobre o acesso aos discursos digitalizados (leia-se, internet), em oposição aos registros impressos (livros, jornais e revistas), caberia ressaltar a importância de um clássico da literatura pátria para a formação intelectual de um público leitor, a cada instante mais afeito ao processo de informação via rede social. Alguns teóricos da literatura advertem que narrativas ficcionais que exigem maior fôlego de leitura, sobretudo Guerra e Paz, de Tolstói; Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski; Os Miseráveis, de Victor Hugo; e A Montanha Mágica, de Thomas Mann, por exemplo, não mais pertenceriam ao abreviado cardápio do leitor de hoje que abdica do livro para debruçar-se sobre efêmeras postagens literárias ou não, divulgadas em blogs e afins. Não obstante, a julgar pelo título, estes escritos se predispõem a discorrer a respeito do romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967), para embrenharmo-nos de mãos dadas pelos buritizais e igarapés ao norte de Minas, iniciando-se a travessia por sua terra natal Cordisburgo da Vista Alegre. A princípio, deve-se explicitar que a saga do jagunço-narrador Riobaldo-Tataranase perfaz pela edificação, pedra por pedra, de uma árdua linguagem lírica construída pelo viés das reminiscências de um eloquente orador abarrancado às margens do Rio Chico, nos sertões Geraes. As recordações narradas pelo protagonista se pautam por um vocabulário repleto de neologismos e arcaísmos, que aproximam o livro de João Rosa, como diriam Zito e Manuelzão, célebre vivente vaqueiro de Corpo de Baile, ao processo artesanal de âmbito idiomático d’Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Quanto aos neologismos, o poeta João Cabral de Melo Neto relataria que, em seu convívio com o autor de Sagarana, presenciara Guimarães Rosa dizer que alguns vocábulos ele próprio os fabricava, quiçá por engenho e alquimia: “– Esta palavra é minha, Cabral, pois fui eu quem a fez!...” – exclamava diante do neologismo. Por esta insólita razão linguística, o singular inventor reivindicava para si uma espécie de certificado de paternidade; e, em retorno ao Grande Sertão, os obstáculos impostos pela ruidosa inventividade Roseana – desconfia- -se que, qual Manoel de Barros, a sua lavra literária era produzida em alambique de coloquialidade e erudição –, podem impulsionar o leitor a acobardar-se diante desta Odisseia sertaneja a lhe assoviar cantigas, qual a de Siruiz: “Olererê, baiana... / eu ia e não vou mais: / eu faço que vou lá dentro, oh baiana! / E volto do meio pra trás...” (Rosa, 1970, pág. 54). Destarte, é preciso acrescentar que o registro ficcional Grande Sertão: veredas paira à luz de um subterfúgio de narração, que se ancora na visita de um suposto hóspede-leitor que, logo no início da intrincada efabulação, irá se dar conta da ambiência rústica e inóspita daquele território cultuado por um herói com reumatismo, Riobaldo, a preveni-lo como distinguir disparo de arma de fogo: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja. (...) Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir (...) depois, então, se vai ver se deu mortos” (Rosa, 1970, pág. 07).

Diante das complexas construções sintáticas, o impacto da organização das ideias alicerçado pelo esplendor de sua prosa encantatória faz de Guimarães Rosa um legítimo gênio da arte literária; e, caso a justificativa ainda não seja suficiente para Vossa Mercê enfrentar a leitura do Grande Sertão, sugiro que procure se entranhar na prosódia forjada deste jagunço-fazendeiro Riobaldo, o Urutu-Branco, atentando para o diálogo entre Rosa, Goethe e Thomas Mann, no tocante ao pacto com o Demo; além de se prestar atenção à paixão proibida por Reinaldo/Diadorim, a Donzela Guerreira das novelas de cavalaria, reinterpretadas por Miguel de Cervantes. Por intermédio deste dúbio sentimento amoroso, instaura-se o enigma que irá se esboçar desde a ocasião de encontro entre Riobaldo e o Menino Reinaldo aos treze anos de idade, até o derradeiro duelo deste ser andrógeno Diadorim, com o pactário Hermógenes, no Tamanduá-Tão, após cruzamento do Liso do Sussuarão.

Enfim, pode-se apenas antecipar aos que ainda não leram o Grande Sertão que, entre o espaço narrativo que separa os dois episódios – o episódio do encontro com o Menino “que muito pitava” e o duelo a punhal com o mefistofélico Hermógenes –, há apenas uma constatação referente ao fato de que, aos treze anos, Diadorim já se travestia de Reinaldo; e, no momento em que o leitor se depara com a revelação do segredo de sexualidade que, após peleja a punhal, se desnuda em Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, a obra literária Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, há de se consagrar entre as mais sublimes criações humanas em âmbito ficcional de todos os tempos, seja o rascunho subscrito em pergaminho de pele de ovelha; em manuscrito de pena de avestruz em cinza de carvão; ou em registros cibernéticos oriundos das tintas da pós-modernidade.

Por Wander Lourenço - Doutor, Mestre e Especialista em Estudos Literários pela Universidade Federal Fluminense e pesquisador de Pós-Doutorado em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa.