Outubro, 2021 - Edição 272
Para valinho, meu sável-madeleine e um cálice de alvarinho
Custei a ter coragem de tocar no voo do poeta para o mistério
do Infinito, em 21 de julho de 2021. Foi há pouco e me parece tanto,
tanto tempo. Poetas da estirpe de Valinho não podem alçar voos sem
volta!!! Só hoje, tive fôlego capaz de expandir o que vivi ao experimentar um singelo sável-madeleine com um cálice de Alvarinho que, neste
momento, ofereço a nosso Poeta.
Foi durante a leitura do poema Viajando no Alvarinho que me
senti passar pela mesma experiência revelada pelo famoso gâteau no
romance do escritor francês. O gosto da poesia-madeleine que eu lia
gerou um impulso, uma força que me fizeram encontrar a linguagem,
agarrar a expressão dos sentimentos interiores emparedados no mundo
exterior, já tão carente pela falta do Aedo. No universo poético de
Valinho, entendemos mistério do Infinito como os próprios segredos
da memória, essa instância que não permite enterrarem-se as trilhas
do passado pessoal e coletivo arraigados, presos, fincados, para além
dos fios da criação. A bem dizer, a memória açula com voracidade os
momentos a serem intensamente lembrados.
No encalço de tudo isso, vamos, então, aos versos do poema
Viajando no Alvarinho, um dos que muito me açula, e onde ficaram brilhantes goles de um cálice de Alvarinho. Neles – no vinho e nos versos
– ouvimos o poeta cantar a música de sua história, em cada sorvedura
cuidadosamente destilada tanto nos versos como no vinho. O cenário
está além, o palco chega ao límpido céu de Lisboa, ou como marcou
a voz lírica, o palco está montado “sob o límpido céu desta Lisboa/
cigana, pombalina, de empedrados,/pastéis de Santa Clara e o João do
Grão/onde degusto sável com Alvarinho”. Esse ritual festivo e essa orgia
de segredos, mistérios e além poéticos no branco Alvarinho acompanhado do peixe sável – que sai do Atlântico e vai desovar no Rio Minho
– também me açulam contínuos remotos aromas e sabores! Não apenas Marcel, em Paris, saboreou/rememorou delícias inesquecíveis.
No poema de Valinho, a madeleine chega do mar e o chá vem de videiras.
Tais iguarias serão, tenho certeza, degustadas com emotiva voracidade
por aquele Proust prestes a sonhar com o cadeau a ser oferecido por
Valinho agora no Infinito. De lá, nosso poeta nos transporta a tempos
além do tempo e, assim também, por ordem de Mnemosine, ele nos
conduz aos mistérios do passado, aos mistérios do além, nesses poéticos goles, não de chá, mas de Alvarinho, a embeber o sável-madeleine.
Ah, caro leitor, como insinua o poema “Europa qual um fungo”, muito
tem quem tem dentro de si uma roda familiar de imigrantes sentados à
mesa, quando se servia “a saudade à sobremesa”! Esses imigrantes, ah,
“esses sempre sempre saudosos imigrantes/sempre te dirão as mesmas
coisas/ah tudo era tão bom num tempo de antes”! Ah, com certeza, o
amigo leitor admirador de Valinho terá, ainda, para degustar na obra de
nosso grande poeta, além da memória galaica, poemas de denso langor
do sujeito poético a confessar suas lembranças, como eu de família de
imigrantes galegos, esquecidos ou desconhecidos de tantos cariocas e,
em geral, dos brasileiros.
Por isso, caro leitor, essa sorvedura de Alvarinho-sável-madeleine
da minha memória para Reynaldo Valinho Alvarez!