Outubro, 2021 - Edição 272

O sinal da águia: Carlos Nejar sobre o mar do tempo

Mitos fracassados, releituras de fatos, relatos, memórias, lembranças, esvaziamento dos sentimentos, sonhos, pesadelos, transposição, fortuna e miséria, transfiguração, o homem e o lobo, seus subterfúgios, seus alentos desesperados, seus abismos inadiáveis e terríveis.

Na peça O Sinal da Águia (Minotauro, 2021), com raiz penetrante na humana condição ou na condição humana, aberta ao susto do tempo, o narrador onipresente fomenta uma discussão alegórica sobre a realidade e termina por rejuvenescer os múltiplos sentidos da dor, da desesperança e da angústia. Na epígrafe de abertura do romance, o alter ego do escritor Carlos Nejar (1939-), que se confidencia através do Longinus, afirma que: Não adiamos Deus (...) O verdadeiro poeta tem a memória da espécie.

Carlos Nejar arquiteta a sua personagem e protagonista com o nome de Alúvio Solário Analdo, que “molhado de palavras nasceu.”. A águia é a representação do espírito profundo da visão privilegiada de Carlos Nejar, também de uma revoada sem destino, calhada no vocabulário encantador do mistério nejariano. Tudo na águia é metafísico. Diz o provérbio que: “o que é do homem o bicho não come.”. Por intermédio de construções adversativas, o romance se arma de evocações que doutrinam o ritmo e o espetáculo da própria águia: ares, céu, ninho, caverna, imortalidade, metamorfose, olhos, caminho...

Em dez capítulos, Carlos Nejar tece uma fábula com poesia, inteligência, sensibilidade e, sobretudo, ousadia. A obra está repleta de sabedoria e de ensinamentos. A claridade vai brotando das páginas, voando (ao mesmo instante enraizando) e adentrando a casa da alma.

De repente, o leitor encontra-se no centro do tempo, fisgado pelas garras da águia sobrevoando o mar da eternidade. Não à toa, Carlos Nejar dispara que “a loucura é apenas lento desequilíbrio entre o lobo e o homem.”.

A águia liberta o homem do jugo do lobo. A atmosfera do homem é a medida dos seus bichos insondáveis: águia, pássaro, rato, lobo, tigre, cavalo... A estória realista e fantástica de O Sinal da Águia desenvolve-se em Lajedo dos Pardais, lugar quimérico, com a absurda verdade da sociedade e as suas contradições: poder, inveja, penúria, disputas, crueldade, desumanidade, calamidades, doenças, revoltas, crimes... até a enigmática ferocidade dos instintos. O leitor é conduzido ao espelho e o fictício é o rosto do vivido. Lajedo dos Pardais existe à margem do rio Arcanjo, um rio de solidões e espantos, que revigora a cidade e os seus habitantes.

Ressalta Carlos Nejar: “O rio não mente quando fala de si mesmo. As autobiografias, em regra, inventam, falseiam – pensou Alúvio – o rio, mesmo ao memoriar, é exato.”. O presente romance é também metalinguístico. Traz à tona as cintilações da força literária de Carlos Nejar: Riopampa, Matusalém de Flores, Pedra das Flores, Assombro, a ideia extraordinária do círculo, além da releitura de poetas que preconizaram imagens redentoras, como Jorge Guillén, Rimbaud, Dante Alighieri, Gôngora, Jorge de Lima, Edgar Lee Masters, Paul Valéry (“Onde está o homem que não explorou em espírito a natureza abissal?”), dentre outros notáveis artistas do verso.

Considero O Sinal da Águia uma rica paródia sobre as ilusões e as desilusões contemporâneas (“A memória é esquecimento às avessas”). Escrito no cume da pandemia do vírus da Covid-19, este livro é um visível testemunho sobre a sobrevivência e a continuidade da espécie humana. O conjunto das personalidades inventadas por Carlos Nejar enfrenta os erros e salda os acertos, no entanto, o homem não deixa de ser o algoz do homem. De acordo com Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem.”.

Carlos Nejar enfatiza a metáfora das feras, porém é a esperança e a fé em Deus que trazem o substrato do infinito, o olhar engrandecido sobre as águas imemoriais e o oceano das conquistas sobre o mar (o crescimento do tempo) que abraçam as gerações, a fraternidade e o amor. O sinal da águia se traduz em luz. A chave secreta deste romance é a digressão do tempo e do mar. Carlos Nejar apanha ainda o erotismo e a formosura da linguagem: “E o mar não acaba. E o orvalho atravessa a árvore. // E a concha fosfórea do sol e o mar que morre e não se acaba.”. A expressão da madrugada coletiva está entranhada na racionalidade da criatividade nejariana e a sua invenção possui asas maiores que detém o rumor da filosofia e da profecia: “Não se pode evitar a luz! Não, não quero ser compreendido, mas compreender, sabendo que o que parecia velho, já se renovou. E a palavra tem infância!” A literatura de Carlos Nejar é feita para sentir, guiada por uma intuição capaz de impressionar, que escapa ao humano por pertencer ao gênio.

Por Diego Mendes Sousa - Poeta e crítico brasileiro. Estudioso da obra completa do acadêmico Carlos Nejar