Outubro, 2021 - Edição 272
Lembranças de Cabul
Em 2002, fiz parte da primeira missão da ONU/Banco Mundial para
reconstrução de Cabul.
Saindo de Nova York, o primeiro destino era Islamabad, no Paquistão. Na
manhã seguinte, embarquei num avião da South African Airways fretado pela
ONU. Como agora, não havia voos comerciais unindo o Afeganistão ao mundo.
Ao chegar, cenas inesquecíveis: o prédio do aeroporto de Cabul coberto
de buracos de balas. Os funcionários do aeroporto pegavam as malas do avião
em carrinhos de mão e as traziam para a área de desembarque. O “setor de
imigração” era uma mesa e uma cadeira. Um funcionário atarefado recolhia os
passaportes explicando que os receberíamos de volta em dois dias.
Um hotel funcionava para atender a jornalistas internacionais. Não
podíamos ficar ali, não era seguro. Um colega, motorista da ONU, chamado
Mahbub, me levou para a “pensão da ONU” – uma grande quadra perto do
centro da cidade cercada por sacos de areia e arame farpado com casas antigas
e agradáveis, rodeadas por jardins meio abandonados. Tinha até uma piscina
vazia e suja. Tinha toque de recolher às 21h.
Nas ruas, havia uma atmosfera de festa: todos pareciam receber estrangeiros muito bem, felizes que o Taliban havia fugido para as montanhas com a
chegada dos americanos e outras tropas estrangeiras.
No primeiro dia em Cabul, o briefing de segurança: uma espécie de
minicurso com várias horas de duração sobre o que fazer e o que não fazer
para evitar riscos. Por exemplo, a população na rua tem o hábito de oferecer
chá ou frutas para estrangeiros, seguindo sua forte tradição de hospitalidade.
Mas fomos orientados a não aceitar NADA, depois de agradecer com educação.
Quando cheguei, expliquei ao motorista Mahbub que eu integrava a primeira missão de reconstrução e, portanto, gostaria de visitar as áreas destruídas da cidade. Ele respondeu: “Áreas destruídas por quem? Pelos Hazars?
Pelos Pashtuns? Pelos Russos?” A resposta de Mahbub esclarecia muita coisa. A
população de Cabul tem um mapa mental sobre quais partes da cidade foram
destruídas em quais conflitos. Além disso, esse “mapa” de destruição urbana
mostrava a complexidade do desafio de reconstrução.
Afinal, o que faz a ONU em uma situação pós-conflito? O que é uma
“Missão de Reconstrução”?
De uma maneira muito simples, trata-se de fazer um projeto dizendo o
que teria de ser feito, como, por quem, quanto iria custar – incluindo um cronograma e resultados esperados.
Nosso principal contato no governo era o ministro Ashraf Ghanni, para
desenvolvimento e cooperação internacional. Na primeira reunião com toda
a equipe, ele disse: “Para nós, o seu trabalho é muito importante. Eu queria
aconselhar vocês a olharem com atenção a experiência de Curitiba, no Brasil,
onde há lições muito interessantes.” O ministro ainda não sabia que sou brasileiro e havia trabalhado por muitos anos em Curitiba como planejador urbano
e assessor do prefeito Jaime Lerner.
Mahbub havia nascido em Cabul e me ajudou a entender a complexidade da história recente da cidade naquele início de século XXI.
– Mahbub, como era a vida na época do Taliban?
– Triste. A gente não podia ter festas, ouvir música, as mulheres não
podiam sair na rua...
– Mahbub, a sua esposa usa burca?
– Claro.
– Por quê?
– Porque é correto.
– E porque a burca é azul clara?
– Porque é bonito, elas ficam parecidas com pássaros... Há países onde a
burca é preta, fica tudo muito triste...
Espero que esteja tudo bem com Mahbub e sua família. Leio as notícias
atuais sobre Cabul e o imagino pensando: “É... Está ficando tudo muito triste...”