Setembro, 2021 - Edição 271

O sentido da Cordialidade

No Brasil é assim: entra governo, sai governo, e tudo acaba como antes. Nas eleições, o candidato promete honestidade e eficiência. Compromete-se em acabar com a corrupção e as desigualdades sociais, mas o tempo passa e nada acontece. Pior, tudo acontece ao contrário. O eleito, se não era corrupto, acaba se corrompendo para se enquadrar no sistema.

No clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda analisa a formação do nosso povo e conclui que a inexistência de limites entre o público e o privado é a principal raiz dos problemas nacionais. Segundo ele, por aqui as relações são baseadas na cordialidade. Isto é, são definidas no campo das emoções e dos interesses pessoais, não no plano racional e do coletivo. Por isso somos o país do jeitinho, do amigo do rei, do fisiologismo e da prevaricação. Temos a Constituição Federal mais extensa do mundo, mas nossas leis têm vários pesos e muitas medidas. Isso explica por que o rico comprovadamente criminoso raramente fica na cadeia, enquanto o pobre mofa atrás das grades pela simples suspeita de ter roubado um pacote de arroz. Afinal, a Justiça custa caro e os doutores da lei, em sua maioria, são filhos de uma elite habituada ao compadrio, ao toma-lá-dá-cá e à troca de favores.

Oligarquias do atraso

A cordialidade em questão esconde as desigualdades e injustiças que geralmente estimulam práticas nada republicanas. Quanto maior a burocracia e o controle do Estado, maior é o valor da propina e o desejo de ter uma sinecura. Buarque propõe um exercício de imaginação: até que ponto um governo liberal, comunista ou mesmo fascista conseguiria mudar isso? Alguns modelos já foram tentados, mas, no final das contas, quase nada mudou.

Ao “descobrir” o Brasil, Portugal não tinha nenhum projeto, a não ser a mera exploração de nossas riquezas. Séculos depois, a República seria um golpe de Estado perpetrado pelas oligarquias insatisfeitas com Dom Pedro II. Em 1930, Washington Luís cairia justamente por desagradar a essas mesmas forças. Getúlio Vargas, que comandou a Revolução contra ele, suicidou-se anos depois igualmente pressionado. Seu herdeiro político, Juscelino Kubitschek, modernizou o país e foi cassado pelo regime militar, cujo primeiro presidente ajudou a eleger.

João Goulart, ainda que despreparado para o cargo que herdou de Jânio Quadros, tentou fazer as grandes reformas e acabou sendo deposto. O governo militar, por sua vez, desenvolveu a economia, mas não dividiu os lucros. A urbanização acelerada do país agravou os problemas sociais. A Nova República caiu nas mãos do filhote da ditadura, José Sarney, cujo governo consolidou o Centrão e fracassou na luta contra a inflação galopante.

O vício do cachimbo

Fernando Collor de Mello foi eleito pelo voto direto com uma agenda liberal, mas confiscou a popança do povo em nome do Estado. Envolvido em corrupção, renunciou ao cargo às vésperas de sofrer o impeachment. Seu vice, Itamar Franco, instituiu o Plano Real num curto período de governo e talvez por isso não tenha tido tempo de se corromper ou ser perseguido. Dentre todos os presidentes que tivemos, Fernando Henrique Cardoso foi talvez o que teve melhores condições para mudar o sistema. Sociólogo brilhante, conhecia nossas mazelas como ninguém, mas se rendeu ao neoliberalismo e comprou o segundo mandato presidencial.

Para chegar ao poder com as bênçãos da elite econômica, Lula da Silva assinou uma carta revisionando os princípios do seu partido. Elegeu-se como reformista, mas adotou políticas neoliberais, que serviram para ocultar os maiores esquemas de corrupção da História nacional. Enquanto isso, os lucros bancários atingiam patamares jamais alcançados no país.

Em todos esses momentos, assim como no governo e no impeachment de Dilma Rousseff, lá estavam os parlamentares do Centrão, que se associam aos presidentes para lucrar e adiar as grandes mudanças. Hoje, estão com o genocida Jair Bolsonaro, mas certamente saltarão do barco tão logo ele comece a afundar. Como diz o ditado, o vício do cachimbo deixa a boca torta. Enquanto não sanarmos os vícios da República será muito difícil desentortar o país

Por Jorge Fernando dos Santos - jornalista, escritor e compositor, tem 46 livros publicados. Entre eles, Palmeira Seca (Prêmio Guimarães Rosa, 1989).