Setembro, 2021 - Edição 271

O cachorro

O cachorro sentou-se calmamente na frente do guichê 23.
— Bom, como o senhor pode ver, eu sou um cachorro.
O atendente levantou o olhar.
— Humm? Sim, sim, claro, eu percebo – respondeu o atendente.
— Bem – continuou o cachorro –,tenho a reputação de ser o melhor amigo do homem. Mas sou muito maltratado. Eu queria fazer uma queixa...
— Hmm… Entendo. Qual a razão da queixa?
— Olha, minha vida é um inferno. Sou cachorro de rua, dócil, abano o rabo para qualquer um. Mas as pessoas me tratam muito mal. Me enxotam, xingam, me tratam como cachorro. E olhe que nunca fiz mal nenhum a ninguém.
— Humm... Sei, sei. Mas o senhor é um cachorro. Se o tratam como cachorro, não podemos fazer uma queixa pelo senhor ser o que realmente é – ponderou racionalmente o atendente.
— Desculpe, eu estava falando metaforicamente. Não vim aqui para rebater silogismos ou penetrar labirintos semânticos ou circunvagar por lógicas hermenêuticas ou existencialistas – rebateu mais racionalmente ainda o cachorro.
— Sei, sei. O senhor veio aqui para fazer uma queixa.
— Isso mesmo!! Como faço isso?
— Sobre o que era a queixa mesmo?
O cachorro suspirou e tentou responder com calma. “Sobre a maneira como a raça humana trata os cachorros. Para que as pessoas parem de maltratar os cachorros, só isso.”
O atendente sorriu, seu rosto se iluminou. “Ah!! Agora entendi. Não tem problema nenhum. Eu ajudo o senhor, é muito simples.”
— Ótimo, então. O que eu tenho que fazer?
— Bom, o senhor precisa primeiro preencher esse formulário, anexar a certidão de nascimento, com três fotos 3x4, depois...
— Um momento – interrompeu o cachorro. – Por que preciso da certidão de nascimento?
— Porque sem certidão de nascimento o senhor não pode ter a carteira identidade e sem identidade não tem como fazer queixa. Como o senhor é um cachorro, imagino que não tenha ainda certidão de nascimento, certo?
— Certo.
— Então, o que acontece... – continuou o atendente. – É assim como eu estou explicando pro senhor: precisa três fotos 3x4, formulário para pedir certidão de nascimento, pedir senha para agendar o pedido para a carteira de identidade e formulário para o registro civil. Se quiser, pode colocar também o CPF na identidade. Qual o seu número de CPF?
— CPF? O que é isso? Não tenho.
— Ah, mas precisa. Sem isso não tem como fazer. Então o senhor precisa também dar entrada lá no Ministério da Fazenda pra ter o número do CPF.
— O que precisa para dar entrada no CPF? – perguntou o cachorro, já impaciente.
— Bom acho que o senhor vai precisar da identidade. Mas, as vezes, eles nem perguntam. Tem que preencher o formulário e dar entrada no protocolo. Depois, com o CPF, o senhor volta aqui com as fotos para pedir a certidão de nascimento”.
O cachorro estava confuso. E a queixa?
— O que é que tem a queixa? – perguntou, solícito, o atendente.
— Como eu faço afinal a queixa? – Desesperava-se o cachorro.
— Ah, é como eu estou explicando pro senhor. Com a certidão de nascimento, o senhor pode dar entrada no CPF. Com o CPF o senhor agenda o pedido de identidade, tira as fotos, preenche o formulário e dá entrada na queixa. O senhor precisa também de um atestado de bons antecedentes. O senhor sempre se comportou direitinho? Já teve passagem pela polícia? Já mordeu alguém?”
Nesse instante, o cachorro não aguentou mais. Quase por instinto, pulou ágil sobre o braço direito do atendente e deu-lhe uma mordida no braço.
Enquanto o atendente gritava, o cachorro saiu abanando o rabo, decidido a continuar cachorro e desistir de ser humano.
Aparentemente, ele também tinha desistido de fazer a queixa.

Por Jonas Rabinovitch - Arquiteto urbanista e conselheiro sênior da ONU em Nova York para Inovação e Gestão Pública.