Setembro, 2021 - Edição 271
Lugares de Letras
Outro dia, lia texto em que a autora, uma jornalista espanhola,
perguntava se quem faz as cidades são os que as habitam ou os que as
contam. Isto é, as descrevem para outros que lá não vivem, usando-as
como cenário para contar histórias.
É interessante para todo leitor apaixonado visitar lugares onde se
passam as suas tramas favoritas: uma Baker Street para os sherlockianos, a Copacabana dos apreciadores de Garcia-Roza. Ou, que dá no
mesmo, visitar lugares que têm a ver com o entorno sentimental da obra
literária de determinado autor: as cercanias da Rua do Ouvidor para
machadianos, as do Pelourinho para os amadianos, deixando-nos ficar
pelos mais óbvios. Não há dúvida quanto a que o montevideano Café
Las Missiones ou o lisboeta Café A Brasileira são vistos de outra maneira
pelo que aprecia a leitura de Mario Benedetti ou de Fernando Pessoa.
Ou, no mínimo, se tornarão endereços procurados mais avidamente
por ele pelas ruas das cidades. As cidades e as serras (lembrando Eça de
Queiroz) têm apelo literário evidente. Ademais, a expressão queirosiana
lembra as duas vertentes mais pujantes em que se movimenta a produção literária brasileira: o regionalismo e o urbanismo (classificação que
não nega as suas evidentes limitações conceituais).
Imbuídos desse espírito de descoberta dos locais que impressionaram seus autores, podemos tentar redescobrir o sentido de determinada criação literária. Ou tentar penetrar-lhe mais profundamente
o sentido, apreendendo condicionantes não facilmente apreensíveis a
bordo de uma leitura apressada. É por isso que, para o bom leitor, visitar
lugares por qualquer motivo revestidos de apelo literário agrega valor
a uma viagem. Cidades “literárias” como Paris ou Lisboa ou o Rio deJaneiro podem ser apreciadas a partir daí com outros olhos, despertando-nos outra espécie de interesse.
Exercício, aliás, de composição literária sobre uma mesma paisagem que se transforma no tempo é a série de romances histórico-
-policiais que Alberto Mussa ambienta ao longo da história do Rio de
Janeiro, uma trama para cada século de História. A paisagem da cidade, no recorte histórico de cada época específica, co-estrela a trama e
envolve as personagens, como aliás deve acontecer nos domínios da
boa Literatura.
Em outra categoria conceitual, situam-se os guias de cidades. Não
o simples guia turístico, mas aquele que agrega ao texto apreciação e
estilo pessoais que façam valer a pena. Como o guia de Salvador, por
Jorge Amado (Bahia de todos os santos), e os guias “Prático, Histórico
e Sentimental” de Olinda e do Recife, por Gilberto Freyre, as três obras
sombreando-se à produção mais sofisticada de seus autores, entusiastas de sua terra natal.
Conheço alguns (bons) guias literários, daqueles que ligam autores aos seus lugares de vida e obra. Ainda melhores quando alternam
informação e endereços. Sobre todos, aprecio o Mon Paris Littéraire,
de François Busnel, publicado em 2016 pela Flammarion. Por conta da
pandemia, torço para que todas as livrarias de bairro referidas no guia
continuem firmes. Ao mesmo tempo que lembro da nossa pouca tradição nessa espécie de publicação, fazendo ligação entre autores-obras-
-lugares queridos. Trazendo informação e reforçando a autoestima das
cidades, dos lugares, dos cidadãos-leitores. Contar também dessa forma
a cidade é vertente a ser mais explorada.