Setembro, 2021 - Edição 271
Entre retalhos
Luciana tem mistério nos olhos e tem cheiro de amanheceres no sorriso.
E eu tenho medo e silencio.
Trabalhamos na mesma loja. Outros, também. Outros trabalham.
Ficamos fechados um tempo. Tempo de pausas. A pausa em mim dura desde
que desisti de insistir em Sílvia. Foram anos de uma espera e de desenhos de
palavras nunca ditas. Era minha vizinha. Sorríamos nos encontros e mais nada.
Entre as cortinas, eu vigiava sua saída e saía, e a minha rapidez nos passos não se convertia nas falas. Que, quando vinham, eram tímidas e vagarosas.
E, quase sempre, solitárias.
Dei sorte uma vez em que ela deixou cair um livro. Era um livro que trazia
amor no título. Deitei minhas mãos no chão e consegui dar a ela apenas o livro.
Ensaiei um improvisado comentário que não saiu. Disse ela “Quanta gentileza!”, e disse, também, um sorriso. Respondi nada. Só depois, diante do espelho,
fiquei repetindo o que poderia ter dito.
Quando falo em Sílvia, distraio os pensamentos de Luciana. Um dia, vi
Sílvia beijando, no portão da casa, um homem que não era eu. Fechei a porta
de mim e fiquei semanas e meses brigando com o que não saía.
E, então, veio Luciana. Entrou depois de mim na loja. E o amor entrou
junto. Medroso, nos inícios. Medroso até hoje.
Usa óculos a Luciana. Usa mais de um. São coloridos. Colorem de tentativas os meus dias. Retiram de mim poemas ensaiados, um a um, em frente ao
mesmo espelho que conheceu tudo de Sílvia. O que mais digo é um que intitulei “Entre retalhos”. É sobre a loja. É sobre os panos. É sobre os esconderijos a
que viajamos, quando sentimos.
Descobri ouvindo que, há não muito, ela terminou uma relação.
“Desacredito dos homens”, foi o que recebi de textos pouco compreensíveis
pela distância que nos separava. A esperança conversou comigo e explicou
que seria uma questão de tempo. Bastava o esquecimento da dor, e ela estaria
pronta para vivermos nossa história.
Decidi o regime, a caminhada, a mudança do corte do cabelo, a compra
de algumas roupas novas, a limpeza dos dentes, a limpeza de tudo e o sorriso.
Horário triste o de fechar a loja e caminhar sem ela pelas ruas anoitecidas do bairro. Moramos em lados opostos. Comprei, outro dia, uma caixa de
morangos, de um vendedor de rua. Cheguei decidido a oferecer. Achei atrevimento. Passei o dia inventando um jeito de dividir aquele sabor. Saber ausente.
Fiz pouco da intenção e, no caminho de casa, dei a um homem mais faminto
do que eu, que estendia as mãos em uma calçada com pouca luz.
Na pouca luz do meu quarto, só há pensamentos. A noite indormida
repete os tempos de Sílvia. O que é melhor, então? Encerrar a vida com cortinas
pesadas de segurança? Não é isso o que quer a luz que atravessa a fresta que
deixei aberta para o acordar. Acordei a vida, quando a vida de Luciana entrou
naquela loja.
Luciana é da conversa. Fala sobre um cliente que reservou um corte. E
corta para outro assunto. Fala de pessoas que desconheço e prolonga a conversa, enquanto não entra outro cliente. Um dia, me disse: “Mudo, você!” E
riu. Fiquei pensando no “mudo”, se era de mudança de atitude ou de ausência
de fala. Vasculhei o dia inteiro os meus pensamentos e resolvi dizer. Soltei um
“Está frio, né?” E a resposta veio em uma velocidade que nunca tive. “Claro que
não, Geraldo.” E, antes de eu concordar, com a tesoura cortando um tecido, ela
olhou disfarçando os óculos e continuou: “Está uma delícia.”
E, então, entrou alguém. E era minha vez. E vendi um pano para cortinas.
Um pano para esconder a parte de dentro da casa ou para enfeitar de alguma
cor a sala interna de alguém. “Está uma delícia”, era sobre o quê? O dia? O nosso
encontro em uma loja de bairro? O futuro que nos esperava juntos? Sobre o que
seria aquele dito? Resolvi ir com ela pelas ruas opostas às que me levavam para
onde eu já sabia. E passei o dia satisfeito com a resolução.
Olhei no pequeno espelho do banheiro e me arrumei de coragem mais
de uma vez. O relógio demorava a compreender que eu tinha pressa de me
oferecer para caminhar com ela até sua casa. Sim. “Está uma delícia!” Era uma
autorização. E teve o sorriso como complemento. E, se não fosse a necessidade
de atender quem chegou, ela teria dito alguma coisa mais. No velho relógio, os
ponteiros diziam que faltava pouco para minha atitude. Fiquei limpando um
balcão já limpo e vendo os outros funcionários com pressa.
Ouvi barulhos de arrumação no banheiro. Ouvi o perfume de Luciana se
aproximando. Iríamos juntos. Era disso que se tratava. Por entre a porta entreaberta, a noite se explicava. Noite de luar. Noite de gravidez de palavras de amor.
Noite de mistérios que despedem um dia, enquanto aguardam um outro.
“Geraldo”, era dona Sônia, a dona da loja, me chamando, enquanto o
meu amor se despedia. Quis dizer que hoje não. Não podia falar naquele sagrado instante. “Geraldo, parabéns, a Jandira disse que você tem muito bom gosto
para sugestões de cortina.” Resmunguei algum som de gratidão. E, depois, ela
disse apenas: “Até amanhã!” Agradeci, apressando a saída, mas a calçada já não
me mostrava ela.
Um frio soprou em mim na quente noite de verão. Silenciado, fui pelo
caminho conhecido acompanhado, apenas, da esperança do dia seguinte.