Setembro, 2021 - Edição 271

Cuidado: você pode estar matando o português

Calma. Não estou me referindo a nenhum compatriota do Luiz de Camões ou do Saramago. Falo do nosso idioma, mais comumente chamado de língua, que melhor classifica um órgão do sistema digestivo.

Um idioma vivo

Diferentemente do latim, do grego clássico, do sânscrito e do aramaico, o idioma de Jesus, o português é um idioma que está vivo e, portanto, sujeito a alterações criadas por esse povo todo: 260 milhões de pessoas de nove países, com apenas um dos quais que pode ser classificado como culto: Portugal. Daí o nosso idioma ser classificado – com algum exagero, de o “Cemitério das Ideias”.
Os nove países que falam português: Portugal, Brasil, Angola, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Cabo Verde.

O dono do idioma

Portugal é o dono do idioma falado e escrito nesses nove países. Comparado com o Brasil – ao menos segundo minha experiência pessoal, morando lá, durante um ano, como correspondente independente de Bloch Editores – no dia a dia, usam um vocabulário muito maior do que nós, brasileiros. Em certos casos, fica difícil entender o que eles estão falando, inclusive (ou inclusivamente, como eles falam) porque não usam radicais importados de outros idiomas, como anglicismos, por exemplo.

Veja se você consegue entender o que a dona Arlete, corretora de imóveis, nos ofereceu para alugar quando chegamos em Portugal, no final da década de 1988, para passar um ano:
“Senhor Doutor Leal – temos um ótimo andar, no Estoril, todo alcatifado, com quatro assoalhadas, uma ótima arrecadação, mas, porém, sem recheio.”

Como, provavelmente, você não entendeu nada, aqui vai a tradução:
Andar = apartamento.
Alcatifado= acarpetado.
Quatro assoalhadas = sala + três quartos.
Arrecadação = depósito fora do apartamento.
Recheio = mobília + equipamentos.

Mas, com o prestígio das novelas brasileiras, eles estão se “abrasileirando” aos poucos. Os portugueses são muito precisos em relação ao uso das palavras. Logo na primeira semana, estacionei o carro num pequeno posto, perto do apartamento. Depois de abastecer, pedi ao único frentista para “olhar” a bateria. Ele olhou e disse: “Está no lugar, sim senhor.” Eu deveria ter solicitado para ele “verificar” a bateria.

Uma piada definidora

Um casal chegou à noite a Lisboa e alugou um carro com o objetivo de ir para a cidade do Porto. Chovia. O trânsito estava terrível e eles completamente desorientados, até que conseguiram parar ao lado de uma calçada e perguntaram a um senhor, que vinha passando: “Por gentileza, senhor, aquela ponte lá embaixo ‘vai’ para o Porto?”

O senhor, educado e solícito como todos os portugueses, olhou para a direção da ponte e falou: “Meu senhor, se ela vai ou não vai não sei lhe dizer, mas se for, nos fará muita falta.” A pergunta deveria ter sido se ela “conduz”.

A involução do idioma no Brasil É consensual que não somos um povo que privilegia a cultura.
Há quem ache que manter o povo num estado de incultura não é obra do acaso e sim um objetivo da classe política para facilitar a conquista de votos. Um povo culto jamais votaria na maioria dos políticos que, há décadas, vêm enriquecendo e atrasando o desenvolvimento e a felicidade do povo, em que pesem os enormes recursos de que dispomos, desde que possamos transformá-los em riqueza.

Todo mundo concorda que o idioma é uma das principais manifestações de um povo culto e bem-educado. Educação e Cultura: duas tragédias brasileiras Há décadas, não temos um Ministério da Educação digno do nome e da sua enorme importância.

Os dirigentes que deveriam cuidar da nossa educação e da nossa cultura (que inclui o idioma), por incompetência, preguiça, falta de motivação, interesse, ou por terem outros objetivos, passam o tempo inventando bobagens para dar a impressão de que estão trabalhando. Mas... e a qualidade das instalações e dos equipamentos? E a merenda escolar? E as facilidades de transporte? E o treinamento dos professores, depois da invenção do Sr. Bill Gates? E o plano de carreira dos professores? E a dignificação do trabalho dos professores?

Será que alguém ainda tem dúvida da importância da educação e da cultura, para a economia, a saúde, a segurança, o índice de desenvolvimento (IDH) e a felicidade de um povo?

Será que alguém desconhece o que aconteceu na Coreia do Sul, que há apenas 15 anos não passava de um pequeno país pobre, carente de matérias-primas, e que, graças a uma importante revolução na educação, é hoje uma nação rica, muito evoluída, com ótimo IDH e exportadora de artigos de alta tecnologia? Alguém acredita que, se tivéssemos um Ministério da Educação, de verdade, teríamos, por exemplo, 500 faculdades de veterinária – a maioria, verdadeiras “indústrias” – sem condições de produzir um ensino minimamente eficiente?

Será que é do conhecimento geral que essa quantidade absurda e imoral é bastante superior à soma de todas as faculdades de veterinária existentes no mundo?

Mas... e o assassinato do português?

Insisto que o idioma é uma das mais importantes manifestações de um povo e o nosso português vem sendo diária a progressivamente assassinado.

Isso a gente verifica notadamente no idioma falado, nas letras das novas músicas, difundidas massivamente nas rádios, nas TVs e muito nas mídias sociais da internet.

Pretensos artistas, que cantam letras absurdas, idiotas, chulas, sem sentido, e até mesmo imorais, contam com grandes salários e públicos de milhões de pessoas.

Vejam algumas palavras que saíram de moda e foram trocadas por outras:
Liquidação = Sale
Vista (bonita) = Visual
Difícil = Complicado
Apagar = Deletar
Escrever = Digitar
Tensão (nervosa) = Estresse
Matéria (texto) = Conteúdo
Falso = Fake
Falar, dizer = Colocar
Pergunta = Questionamento
Diferente = Diferenciado
Uma prova importante = Robusta
O que não consta na bula = OffLabel
Esses são apenas alguns exemplos colhidos ao acaso. Se essa tendência é boa ou má, o leitor dirá.

Por Luiz Octavio Pires Leal - O escritor, médico, jornalista e membro da Academia Brasileira de Medicina.