Setembro, 2021 - Edição 271

Biblioteca dividida

Já fazia quase seis meses que estava tentando organizar a minha biblioteca aqui na Santa Tereza.
Depois de várias tentativas, cheguei à conclusão de que não é questão de organizar, mas simplesmente um problema de espaço: o conteúdo é maior do que o continente. Outro dia, conversando com o meu amigo Dr. Heitor Rosa, tive a informação de que problema semelhante está vivendo nosso amigo comum, o ex-reitor da Universidade Federal de Goiás, Dr. Joel Pimentel Ulhoa, possuidor de uma biblioteca com mais de 8.000 volumes, que não caberia no apartamento para onde ele se mudou.

Depois de tentar de todas as maneiras conciliar o problema que me afligia, resolvi reformar uma casa que estava desocupada, já há bastante tempo, por motivo da mudança de seu antigo morador, que resolveu ir morar na cidade. Confesso que estou parecendo uma “barata tonta” dentro da minha biblioteca, não consigo escolher quais livros levar para o “anexo” (apelido dado à nova biblioteca); sento-me em frente às estantes e percorro as suas prateleiras, com olhos curiosos à procura dos “enjeitados”; folheio este e aquele outro; não, este eu preciso consultar de vez em quando, aquele outro está na fila para ser lido, enfim, estou me sentindo com a mesma sensação de impotência manifestada pelo escritor argentino Rodrigo Fresán (A vida encaixotada, revista Serrote, Instituto Moreira Sales, São Paulo, 2012).

Fresán registra no seu diário as dificuldades que enfrentou para mudar de casa, tendo que encaixotar seus livros para o transporte, no que foi auxiliado pela sua esposa (minha mulher enumerou e atribuiu uma letra a cada prateleira de minha biblioteca); o problema é que ele, Fresán, de vez em quando tirava um dos livros que já estavam encaixotados e passava a folheá-lo (por favor, dizia ela, você está atrapalhando, vá dar umas voltas e volte mais tarde).

Nesta voltinha, ele passou em uma livraria e comprou, outros doislivros, um deles ele já possuía e se esquecera (Não faz mal, justifica-se, aquele primeiro era em capa dura, difícil de manusear na cama e o outro deveria, supôs ele, ser de muita utilidade no futuro (sic), cujo título não deixa de ser atraente: “Coisas que um neto deve saber”).

Vejam comigo um dos momentos “dramáticos” do diário de Fresán (Chegou o grande e terrível dia; uma quadrilha toma de assalto o apartamento onde vivia e enfia livros em caixas numa velocidade espantosa; contemplo as caixas e leio títulos de que havia esquecido, totalmente. É como se os visse pela primeira vez e não consigo resistir ao impulso de folheá-los pela última vez!).

Diferentemente do que ocorreu com Frésan, não sofro nenhuma pressão para “descartar” este ou aquele livro (ele chegara a pensar em fazer algumas doações, para diminuir a sua quantidade), preciso apenas definir quais ficarão na biblioteca central e quais deverão ir para a nova “morada”; porém, não sei qual de nós dois sofreu mais, com a mudança.

Na tentativa de ter apoio psicológico nesta empreitada, resolvi mudar o nome da casa; ao invés de “anexo”, que embute a estranha sensação de subordinação, ou seja, os livros que fossem transferidos para ali não seriam os meus preferidos, passei a denominá-la de “Casa amarela de livros”, nome mais romântico e, sobretudo, com mais personalidade cultural (ao adentrá-la, antes desta mudança de nome, parecia que era repreendido por Eça de Queiroz, falando em nome das estantes abarrotadas de livros de e sobre escritores portugueses): “Por que você nos procura, se somos de segunda classe? Volte para seus preferidos!” Para diminuir a sensibilidade dos novos habitantes da “Casa Amarela”, meu amigo e jardineiro Décio e eu plantamos, ao redor da mesma, vários arranjos de flores e plantas ornamentais (dois pés de “manacá” me foram presenteados pelos amigos Átila e Soninha de Freitas, em uma tarde nostálgica quando se despediam da antiga casa, onde moraram por mais de trinta anos).

Ontem, ao folhear (pela última vez, antes de mudá-lo de endereço) o livro Brecht – Uma introdução ao teatro dialético, de autoria do jornalista e ensaísta Fernando Peixoto, voltei-me, instintivamente, ao meu livro publicado pela Editora Kelps, Entre o Sonho e a Realidade: Do Brasil dos anos 60 à Rússia dos anos 90, em que descrevo as discussões que alguns de nós universitários da década de 1960, promovíamos ao redor de uma “mesa de chope”, procurando entender a dialética do teatro comprometido com a ideologia socialista.

Parece que impulsionado por uma força irresistível, fui à “Casa Amarela” e reencontrei o livro que procurava: Esta é a Minha História, Louis Bodenz, 1948. Na primeira página, vejo minha assinatura tracejada com letras inseguras, seguida da data de aquisição do mesmo – Curitiba, 8/12/1958 –; este livro foi um dos meus contrafortes ao ateísmo; ganhei-o de um colega do banco onde trabalhava que, por perceber minha incipiente militância política, procurou “proteger-me”. O livro conta a história de um líder sindical norte-americano pertencente ao Partido Comunista, que se converteu ao catolicismo.

Vez por outra, ouvimos notícias de que o livro impresso vai acabar; sei não! Não acredito ser possível sentar-me em frente ao computador e, de repente, pensar em um livro que li há muitos anos e procurá-lo no arquivo virtual da máquina.

Aqui, sentado na minha poltrona, faço minha visão percorrer todos os escaninhos das estantes e, de repente, sou atraído nada menos pelo exemplar de um livro publicado em 1902 (Homens e Cousas Estrangeiras – José Veríssimo), o pego nas mãos com cuidado e carinho; sua capa ainda é a original, como veio da impressora dos irmãos Garnier na França.

Se nossa vida fosse exclusivamente uma busca de momentos de felicidade, creio poder dizer para mim mesmo, toquei-a com as pontas dos dedos ao folhear aquele livro que já estava um pouco esquecido e que, ao reler algumas das suas páginas, principalmente seu maravilhoso ensaio sobre Emile Zola, escrito logo depois do envolvimento daquele escritor com o caso Dreyfus, culminando na publicação em 1898 da carta panfletária (Eu acuso) na imprensa francesa; Veríssimo discute assuntos que estavam acontecendo!
Continua penosa a mudança, levo três livros para a Casa Amarela e trago de volta outros dois! Vou conseguir

Por Helio Moreira - Membro da Academia Goiana de Letras