Agosto, 2021 - Edição 270

Os personagens sedutores de Bret Harte

O maior desafio talvez de um autor de ficção é criar personagens sedutores que encantem o leitor, que segurem a narrativa fazendo-a parar em pé. Alguém faz isso maravilhosamente bem: o norte-americano Francis Bret Harte (1836-1902). Quem não o conhece e não leu seus contos não sabe o que está perdendo. São histórias sensíveis, divertidas, todas repletas do mais belo sentimento humano – a compaixão.

A seleção que se encontra em Os Melhores Contos de Bret Harte (SP: Círculo do Livro, s/d) é uma verdadeira preciosidade. Nessas histórias, Bret Harte faz o que bem entende com o leitor: chorar, rir, ficar triste, comovido. Sem exagerar nem perder a mão do que pretende transmitir. Um talento nato para a literatura, um dos maiores escritores do século XIX, admirado até pelo grande Charles Dickens, que o influenciou e disse que gostaria de ter escrito o conto Os exilados de Poker Flat, um dos mais comoventes e brilhantes do livro. Sim, brilhantes como o ouro da Califórnia, onde Bret Harte viveu desde os treze anos de idade, com a mãe viúva, à procura de alguma riqueza, e onde situa suas narrativas na época da corrida do ouro, por volta de 1850. Califórnia que não era ainda a California Dreamin da contracultura dos anos 1960, nem a dos bilionários de hoje do Vale do Silício, pois era tão somente a terra do mais rápido no gatilho, do salve-se quem puder. Mas como diz Marques Rebelo, tradutor e apresentador dessa ótima edição, o ouro que o menino encontrou foi outro: o ouro humano. Pois foi de gente de todas as condições e ambições que ele extraiu a riqueza de sua literatura em meio a ganga bruta daquela terra inóspita: jogadores, fugitivos, bêbados, prostitutas, ladrões, bem como pessoas honradas e generosas. Histórias que influenciaram o compatriota do mesmo quilate, Mark Twain, que, segundo Borges, logo esqueceria a sua bondade...

Para dar ideia dessas histórias, destacamos algumas, verdadeiras obras-primas da arte do conto, gênero que exige um bom fio condutor. Disse Flaubert que não é a pérola que faz o colar, mas sim, o fio. E as narrativas de Bret Harte têm o fio, a coesão como grande qualidade de sua estrutura, além do enredo sempre original, surpreendente, apaixonante. Em A fortuna do Campo Trovejante, Os exilados de Poker Flat, De como Papai Noel veio a Simpson´s Bar, Um cão amarelo e O nível da cheia, precisamos pôr o lenço do lado, pois são histórias belíssimas de calor humano, de chorar, de bondade extrema, que evocam cenas bíblicas como a do Dilúvio ou que lembram a Pietá de Michelangelo. De prender a respiração. Outras, de sagacidade e de fazer sorrir, como a de O sócio do Tenessee, Uma ingênua das “sierras” e O poder da imprensa, para citar alguns exemplos.
Mas, e as personagens sedutoras?

Para começar, no pequeno acampamento de mineiros chamado Campo Trovejante, nasce um bebê, filho de uma mulher pecadora. Um acontecimento que por sua humildade é digno de ser comparado ao nascimento do Menino Jesus. Num lugar rústico, rude, o menino é saudado solenemente pelos cem homens que o aguardavam e o recebem como um presente. E, no momento em que se ouviu um grito queixoso como nunca se ouvira no acampamento, “o pinheiral cessou de suspirar, o rio deixou de murmurar e o lume, de estalar. Parecia que a própria natureza parara para ouvir também.” (pág. 11) Houve um nascimento e uma morte: “Bastou uma hora para ela subir aquela íngreme estrada que ia ter às estrelas e sair para sempre do Campo Trovejante (...)” (pág. 11) O que seria do bebê? A partir daí é só emoção. A renovação da vida como um milagre.

Como não falar ainda do pequeno grupo de viajantes presos pela nevasca na montanha, no conto Os exilados de Poker Flat, cujos destinos cruzados, com pouca comida e muita fraternidade, enfrentou aquele exílio involuntário? Vejamos: O sol abandonou-os outra vez, e outra vez, caindo do céu de chumbo, os flocos de neve começaram a cobrir a terra. Dia a dia crescia a neve em redor deles, até que, por fim, muros de deslumbrante alvura se levantaram a vinte pés por cima de suas cabeças. Tornou-se cada vez mais difícil alimentar o fogo; as árvores caídas, ao seu alcance, estavam sepultadas já pela neve. E, todavia, nenhum deles se lamentava. Os noivos deixaram de contemplar a desoladora paisagem, fitavam os olhos um do outro e eram felizes.” (pág. 30).

Não poderia também ficar esquecido o cão amarelo que dá título ao conto homônimo. Sobre ele, diz o narrador que não se tratava de um cão comum, ou sequer de um cão feio, mas um cão cuja sagacidade era admirada por todos. Quase gente. Além de toda a destreza e agilidade, tinha uma singularidade, cuidava dos bêbados do povoado:
“Acompanhava o grupo até o bar e esperava do lado de fora da porta, com a língua pendendo-lhe regaladamente da boca, até que reaparecessem; consentia mesmo, com prazer, que tropeçassem nele, e caracolava à frente do grupo, indiferente às pedras e epítetos que lhe eram canhestramente atirados. Depois, acompanhava cada um, separadamente, a casa, ou ficava deitado ao lado dele, na encruzilhada, até que fosse ajudado a alcançar sua respectiva cabana.” (pág. 136) Mas não somente os personagens são sedutores, pois o são também os temas e sobretudo a linguagem rica, elevada, literária, de um autor que perambulou e exerceu as mais diversas profissões, de mineiro na Califórnia a cônsul na Alemanha e Inglaterra. Homem culto, conhecedor dos clássicos, leitor de Homero, também sua mina e seu filão literário, que se tornou o mais conhecido da América do seu tempo. Bret Harte é, antes de tudo, californiano, como diz o nosso excelente Marques Rebelo, porque nas “sierras, nos bares, nos dancings, nos filões entre revólveres e linchamentos, é que está a única e verdadeira fonte de sua glória e de sua fortuna.” (pág. 7).
Uma mina de ouro inesgotável a ser explorada.

Por Vera Lúcia de Oliveira - da Academia de Letras do Brasil.