Agosto, 2021 - Edição 270
Música e letras
Quantas vezes não lemos nos créditos de um disco “música e letra”
de autoria de fulano ou beltrano. Texto (ou letra) e melodia, os componentes da canção. A chamada música popular brasileira já teve prestígio
internacional como produto cultural, funcionando como veículo de
difusão da língua portuguesa pelo mundo. Mas a produção musical,
como tudo na vida, conhece altos e baixos (e não me refiro a questões
estéticas, que o gosto muda ao sabor dos tempos). Fato é que o que se
produz hoje é totalmente diferente do que se produziu ontem, tal a vertiginosidade das mudanças que vivemos, mas esta é outra história.
O fato é que essa imbricação de letra com melodia (não me refiro aqui a música instrumental, e a brasileira existe e é de qualidade)
constitui considerável material de estudo, e os proporciona muito bons.
A expressão do cotidiano nos letristas populares é de interesse incontroverso, e as vertentes de investigação se multiplicam, talvez tentando
acompanhar a variedade de formas de expressão de compositores e de
letristas.
Muitos são os títulos cuidando de temas – ou movimentos musicais
– específicos: do samba ao funk, passando por bossa nova, tropicalismo,
rock brasil, forró e outros. Mas nos domínios da interação entre poesia,
como expressão estética, e música popular, destaco o Música Popular
e Moderna Poesia Brasileira, de Affonso Romano de Sant’Anna (1976,
2013), sem dúvida um guia para acompanhar o percurso seguido pela
música e a poesia no Brasil desde o Modernismo de 1922. A primeira
parte, “De Noel e o Modernismo aos Secos e Molhados”, dá uma ideia da
abrangência do estudo.
Com outro enfoque, mas também abrangente e erudito, é o reverenciado A Música Popular no Romance Brasileiro (2002), de José Ramos
Tinhorão. Em três volumes, inicia no século XVIII, vai ao XIX e dedica ao
século XX os dois volumes seguintes. Tendo como mote a referência à
música popular, percorre os rincões do país, destrinchando a produção
literária desde Pernambuco ao Rio Grande do Sul, desde as metrópoles
às pequenas cidades do interior, indo do morro ao asfalto. A lista de títulos consultados inclui expressamente 230 obras. Expressamente, porque
o autor refere inúmeras outras no corpo da argumentação. Dentre estas,
A Oferta e o Altar, de Renato Pacheco (1964).
Pacheco, nascido em Vitória, em 1928, e aí mesmo falecendo, em
2004, é dos maiores vultos da cultura espírito-santense no século XX. Por
Tinhorão tem a temática do seu primeiro romance integrado ao ciclo
literário que o pesquisador considerou “tão caracteristicamente paulista de histórias reveladoras do impacto dos modelos urbanos da capital
sobre as pequenas cidades” (vol. II, pág. 99-101). Para os estudiosos, a
obra de Pacheco inaugura o novo romance capixaba, que, a partir daí,
iria, em pouco mais de cinquenta anos, do regional ao urbano, contemplando uma multiplicidade de temáticas tal que, ao inserir-se no
ambiente maior da produção literária brasileira contemporânea, quase
que o sintetiza em termos de tendências.
Sendo universal, a música expressa a alma do povo. O seu estudo
sistemático permite ainda abordagens originais e interessantes, como a
de Tinhorão, que com sua pesquisa acabou trazendo à tona ciclos e tradições literárias esquecidas ou pouco conhecidas