Agosto, 2021 - Edição 270
gigantesGigantes
Todas as vezes que pesquiso manuais de literatura como A
Literatura Portuguesa, de Massaud Moisés(1928-2018); História
Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi (1936-2021) ou
Teoria da Literatura, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1939),
que recebeu o Prêmio Camões de 2020, penso naquela
frase repetida por Isaac Newton (1643-1727): “Se eu vi
mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes.”
Que imagem linda. Somos tão pequenos em nosso
conhecimento, uns anões, mas, empoleirados nos
ombros dos mestres gigantes, vemos mais que aqueles
que nos precederam. Cada geração está nos ombros
dos que vieram antes.
Gigantes... Seres fantásticos e míticos. Seres ctonianos, saídos da força da Terra, desmesurados, de instintos brutais como os antigos dinossauros. Enormes,
aterradores, com cabeleira espessa e barba ruiva. Para
derrotá-los, só mesmo conjugando o poder de um deus
que fulmina e a disposição de um ser humano corajoso.
Foi assim que Davi venceu o gigante Golias. Davi
franzino, sem armadura, com uma funda e pedras lisas
apanhadas do rio. Chegou à frente do adversário com o nome
de Jeová dos Exércitos nos lábios. Atirou a pedra com determinação. Ela penetrou na testa do gigante, que caiu como um
tronco de árvore derrubado na floresta.
Nas aventuras marítimas, sem mapas, sem bússolas,
sem estrelas, mergulhados na escuridão do desconhecido,
os homens imaginavam monstros e sereias. Cada monte,
que despontava das ondas, poderia ser um gigante. Camões
(?1524-1580), na epopeia portuguesa dos Lusíadas, descreve
Adamastor, o gigante do Cabo das Tormentas, que afogava as
naus que tentavam dobrar naquele lugar, levantando-se em
forma de tempestade revolta. Cheio de ira e oposição à
audácia dos navegadores sob o comando de Vasco da
Gama, heróis de feitos extraordinários.
Todo gigante tem um ponto fraco, geralmente um amor impossível. O gigante Polifemo, da
Odisseia de Homero (...-898 a.C.), depois da rejeição
de uma ninfa, passou a levar existência solitária
numa caverna, cuidando de ovelhas. Sua rotina é
interrompida com a vinda de Ulisses e seus companheiros, que desembarcaram durante a viagem de Troia
para casa. Entram no antro de Polifemo, que fecha a caverna com uma
rocha, fazendo-os prisioneiros. Polifemo devora dois homens com sua
fome de sangue. Odisseu oferece vinho ao gigante. Fura com um espeto
em brasa o seu único olho, cegando-o. Os homens escondem-se por
baixo das ovelhas e fogem. Lá fica o gigante gemendo, no mais completo abandono.
O poeta é disforme como Baudelaire (1821-1867) retrata no poema
“Albatroz”: corpo pequeno de ave e asas gigantes que não o deixam
caminhar pelo chão. Quantos zombam do poeta, desengonçado no tombadilho do navio, até que ele toma consciência e se lança aos ares, como
quem se liberta e expande sua personalidade.
Dom Quixote, o célebre personagem de Cervantes (1547-1616),
imaginou ver gigantes, mas eram moinhos. Os braços eram as pás que
giravam o vento e moviam a mó. Às vezes, como o triste cavaleiro andante, concentro-me nos meus problemas, que são gigantescos. Tenho a
impressão de que não suportarei mais, que serei espremida, moída e
triturada. Em vão tento esconder com um sorriso as minhas dores. Umapedra gigante esmaga meu peito. Aí me lembro que devo superar a aversão que me lançam e retribuir com perdão. Posso, afinal, matar gigantes
e montar em dragões.
Continuo folheando os manuais de literatura, que amo profundamente. Fazem parte da minha história de formação. Procurei, desde
a juventude, dominar a sabedoria desses professores gigantes, crescer,
seguir além das trilhas abertas. Graças a eles, meus olhos alcançam vales
verdes entre as rochas das montanhas.