Julho, 2021 - Edição 270

Música é um ideal de vida - Entrevista com Isaac Karabtchevsky

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura

Isaac Karabtchevsky é um dos grandes nomes da música clássica brasileira.
Arnaldo Niskier: Recebemos a visita do maestro Isaac Karabtchevsky. Como surgiu a ideia de criar a Orquestra Sinfônica Heliópolis, de uma grande favela em São Paulo?
Isaac Karabtchevsky: Diria que a ponta do iceberg de Heliópolis é a Orquestra Sinfônica da comunidade, formada pelos melhores músicos. Ela representa, para mim, um projeto ambicioso, porque resgata a identidade de tantos jovens que, se não fosse essa vocação orientada para a música, talvez tivessem optado por outras profissões não tão qualificadas quanto a música. A música para eles não é só uma profissão, representa também um ideal de vida. Eles se encontram e se identificam com ela. Acho que é uma forma de resgate social e também cultural.
Arnaldo Niskier: Eles são escolhidos por concurso?
Isaac Karabtchevsky: Sim, temos um grupo de professores extremamente qualificados, são em geral os melhores músicos de São Paulo, da OSESP, da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal e de outras orquestras. Temos, em meio a essa profusão de grandes professores, também a orientação técnica para ensaios parciais. Tenho maestros assistentes que trabalham regularmente para alimentar o estilo interpretativo de cada um. Eu escolho as músicas. Lembro perfeitamente que o primeiro concerto que fiz com Heliópolis foi nada mais nada menos do que uma das obras mais ambiciosas do repertório sinfônico. Foi a Segunda Sinfonia de Mahler, a chamada Ressurreição. Quando falo nela, me vem até arrepios, porque ninguém acreditava que a Orquestra tivesse condições de fazer essa sinfonia. Eu me dei conta, depois do primeiro ensaio, que quando eu fazia um gesto, qualquer que fosse, eles seguiam rigorosamente as inflexões do gesto. Então percebi que estava defronte a um conjunto altamente qualificado que merecia, claro, muitos ensaios sucessivos, mas o material básico estava lá à minha disposição.
Arnaldo Niskier: E os recursos para manter a Orquestra Sinfônica vêm de onde?
Isaac Karabtchevsky: Doações, alguns investimentos, a presença de algumas empresas importantíssimas dentro do cenário. Graças a elas, estamos conseguindo manter até hoje, apesar da pandemia, a unidade e a continuidade desse projeto.
Arnaldo Niskier: A pandemia prejudicou as atividades da Orquestra Sinfônica de Heliópolis?
Isaac Karabtchevsky: Diria que a atividade cultural foi baleada, foi uma contusão violentíssima, porque nos vimos privados daquilo que é essencial para nós, músicos, que é o contato com o público. Você está de certa maneira direcionado para uma prática a qual jamais pensávamos que fosse possível, fazer com que os músicos toquem mascarados, que o maestro reja mascarado...
Arnaldo Niskier: Isso dificulta sua comunicação com os músicos?
Isaac Karabtchevsky: Impressionante. Explico rapidamente. Quando vou fazer um pequeno gesto assim, (canto) é um rubato. Nesse movimento, é necessário que o músico tenha contato com minha expressão facial. Não posso fazer esse gesto e exigir que executem esse rubato (chamamos rubato, porque rouba o tempo) sem que venha acompanhado de uma expressão que qualifique esse rubato.
Arnaldo Niskier: E você acha que a Orquestra Sinfônica de Heliópolis é um celeiro também de músicos para outras orquestras e outras atividades musicais?
Isaac Karabtchevsky: Apenas para complementar aquilo que estava dizendo. Os concertos mascarados vêm de encontro à necessidade de fazermos sem a presença do público e mantendo rigorosamente todas as leis de distanciamento social. É uma forma de dizer: “Olhe, estamos vivos e aptos a manter a nossa mensagem”. Mas longe de ser a forma ideal de comunicação. Dessa maneira foram afetados também os corais, os quartetos, as orquestras de câmara, tudo aquilo que diz respeito à cultura musical em si. Não falo nem de teatro nem de balé nem de outras manifestações do espírito humano, que foram drasticamente violentadas através dessa pandemia.
Arnaldo Niskier: Qual a sua experiência na Orquestra Petrobras Sinfônica? Você é muito falado também, nesses últimos 15, 20 anos, por essa atividade cultural da Petrobras. Como você se inseriu nesse trabalho?
Isaac Karabtchevsky: Estava voltando da Europa, onde assumi, durante oito anos, na França, mas trabalho na Europa desde 1988. Primeiro com Viena, depois com Orquestra Tonkünstler, depois fui contratado pelo Teatro La Fenice, na Itália, e por último na Orchestre National dês Pays de la Loire, que fica no sudoeste da França. Quando tinha terminado o contrato, recebi o convite para ser o titular da Orquestra Petrobras que, para mim, tem um significado muito importante, porque foi fundada e liderada, até sua morte, pelo maestro Armando Prazeres, que foi barbaramente assassinado, uma coisa que tem permeado a vida no Rio de Janeiro. Infelizmente, perdemos o mentor de uma atividade que viria a se consolidar com uma das mais importantes dentro do panorama cultural...
Arnaldo Niskier: Tenho a impressão de que o Prazeres deveria ter mais ou menos a sua idade, porque o conheci no Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ele dirigia um projeto musical na UERJ e fazia com que a garotada tomasse gosto pela música, sobretudo a música clássica e, infelizmente, aconteceu essa tragédia. Deus colocou, no seu lugar, os dois filhos que também são maestros e que seguem a trilha deixada pelo Armando Prazeres.
Isaac Karabtchevsky: Grande legado. O Carlos, que está hoje regendo a Orquestra Sinfônica da Bahia, em Salvador, e o meu assistente, também maestro e que tem regido muito a Petrobras Sinfônica, o Felipe Prazeres, têm seguido a trilha do pai e realmente deram continuidade ao trabalho dele.
Arnaldo Niskier: Você passou também uma temporada ajudando o Adolpho Bloch a realizar sua grande obra. Você me disse que passa por ali pela Rua do Russel e lembra desses tempos. O que vem à sua mente?
Isaac Karabtchevsky: Vejo, naquela justaposição de dois edifícios, o cerne do pensamento de Adolpho. Foi um homem que não sucumbia ante às dificuldades, ao contrário, as enfrentava com galhardia. Para ele, nada seria possível se não fosse ultrapassar barreiras. Saiu consolidada a aspiração de Adolpho Bloch na construção de um grande centro cultural, onde estavam coligados a editora, a Manchete, e, no edifício ao lado, a televisão. Isso iria certamente se propagar por aquele quarteirão todo se vivo estivesse.
Arnaldo Niskier: Acho um absurdo terem trocado o nome do Teatro Adolpho Bloch para dar um nome comercial, mesmo que a firma tenha lá seu valor e tenha protegido aqueles bens a que você se referiu, mas nada justifica trocar o nome com que o teatro nasceu e colocar um nome comercial. Você se lembra da “1812”, no Aterro do Flamengo? Você dirigiu a Orquestra Sinfônica Brasileira, não foi?
Isaac Karabtchevsky: Exatamente. Nos meus tempos de Sinfônica Brasileira (passei 26 anos lá), o Adolpho me chamou uma vez e disse assim: “Vamos fazer um concerto ao ar livre.” Foi a primeira vez que fui defrontado com a ideia de tirar a orquestra dos palcos, dos teatros do Rio, seja Sala Cecília Meireles ou Theatro Municipal e ir para um lugar popular. Foi ele que intuiu que o espaço cênico do Rio de Janeiro é tão impactante quanto o palco de um teatro.
Arnaldo Niskier: Exatamente. Havia a promessa de que outras mais viriam depois disso, apesar do Projeto Aquarius ter sido também um sucesso. Tinha muita coisa ao ar livre.
Isaac Karabtchevsky: O Projeto Aquarius foi já uma ideia de outro visionário, Roberto Marinho. Ele quadruplicou aquelas ideias iniciais de 10 a 15 mil pessoas e transformou o projeto numa coisa indispensável à comunidade carioca. Ele foi tão importante que chegamos a fazer óperas, foi feita Aída de Verdi na Quinta da Boa Vista, com a presença de 200 mil pessoas.
Arnaldo Niskier: A experiência de Heliópolis, grande favela de São Paulo, inspirou outras comunidades a fazer coisa parecida?
Isaac Karabtchevsky: A ideia central do aproveitamento das favelas como depositários de grandes talentos veio do movimento que se esboçava então em Caracas, na Venezuela, com José Antonio Abreu, grande amigo meu, que faleceu há uns quatro anos. Ele foi realmente o mentor dessa volta em busca do talento e dizia (lembro-me perfeitamente das palavras dele): “Não é necessário prospectá-los como se faz com o petróleo em grandes profundidades. O talento na América Latina está na superfície”. Dito e feito. Íamos a essas favelas com uma proposta que tivesse início, meio e fim e nos defrontávamos com uma quantidade incrível de jovens talentos, ainda vinham como crianças...
Arnaldo Niskier: Não é só na música popular brasileira, que é uma explosão permanente. Músicas clássicas, que são de fundamental importância para a cultura internacional, são também utilizadas maciçamente e com muito sucesso. Isso é uma coisa que temos que louvar com toda certeza. Não quero deixar passar sem um registro sua passagem de 25 anos pela Europa como maestro titular de orquestras muito importantes e óperas que você realizou, dirigindo Boris Godunov, Tristão e Isolda de Wagner. Lembro-me de Tristão e Isolda no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Que lembrança você tem desses tempos?
Isaac Karabtchevsky: Dirigir na Europa, para mim, foi com uma extensão de todo trabalho que já vinha fazendo aqui no Brasil, só que defronte a uma realidade muito melhor constituída, porque lá as orquestras têm maior tradição, têm um público cativo, no sentido de que é um público formado através de gerações, enfim, aprendi muito. Sendo titular das orquestras, aprendi muito também como se organiza a vida musical nessas comunidades. Fiquei fascinado, por exemplo, com os anos que passei em Viena, de 1988 a 1994. Assumi a Orquestra Tonkünstler, uma orquestra sinfônica, mas atuava com essa orquestra na mesma sala onde Mahler regia os concertos, era o Musikverein, um dos prédios históricos de Viena, e tocávamos lá, uma acústica absolutamente perfeita, aprendi muito. Aprendi como se organiza, como se lida com o público já constituído e, principalmente, ampliei consideravelmente meu repertório. Nesse ínterim, ainda em Viena, alguém da State Opera, da Ópera Estadual, foi assistir a um concerto meu e me convidou para reger na State Opera como convidado. Regi, comecei com Rossini, O Barbeiro de Sevilha, depois fui para Carmende Bizet, Navio Fantasma e Tristão e Isolda. Isso, para mim, foi um momento revelador, o meu primeiro contato com uma orquestra de ópera que não era nada mais nada menos que a Filarmônica de Berlim, que também atuava concomitantemente não só com orquestra de concerto, mas também na ópera, então foi um aprendizado. Logo depois disso, como regente de ópera, fui convidado para o La Fenice, em Veneza, onde passei mais oito anos, sempre entremeando com minha temporada brasileira. Estava aqui como titular da Sinfônica Brasileira, mas como as temporadas não coincidem, ou seja, julho e agosto são meses de férias lá e aqui é plena atividade, então dispunha sempre de tempo para me dedicar à temporada brasileira e à temporada europeia. No La Fenice, foi um outro momento, também revelador, porque era só praticamente regência de óperas. Minha vida foi permeada de contatos com Rossini, Verdi, Puccini, todos os grandes nomes. VillaLobos não se conhecia no La Fenice. Se eu fosse convidado hoje para o La Fenice, teria introduzido evidentemente esses compositores. Depois do La Fenice, onde passei oito anos, fui para a Orchestre National dês Pays de la Loire, no sudoeste da França, onde passei seis anos.
Arnaldo Niskier: E aí fez o governo francês lhe dar uma das medalhas mais importantes da França, Cavaleiro das Artes e Letras. Título mais que merecido. Você espera que essa pandemia acabe rápido para voltarmos à pujança das apresentações?
Isaac Karabtchevsky: Chevalier des Arts et des Lettres. Estou olhando para cima e pedindo a Deus que acabe o mais rápido possível.

Entrevista com Isaac Karabtchevsky transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura.