Julho, 2021 - Edição 269
Vasco da glória
Mentira muitas vezes repetida se torna verdade. Para
desmentir, depois de muito tempo, dá um trabalho... Frei Vicente do Salvador,
em sua História do Brasil, de 1600 e pouco, afirmou que Vasco Fernandes
Coutinho morreu pobre e abandonado e que não tinha um lençol para se
cobrir. Nem precisava com o calorão que faz em Vila Velha! E se dormisse em
rede, como os índios com quem conviveu?! No entanto, outros historiadores
repetiram o primeiro e assim se construiu a pecha de “derrotado” para o fundador do Espírito Santo. Mas, como, se Vasco Coutinho iniciou aqui a construção
de uma extensão do império português, no que chamou de Espírito Santo, que
manteve o nome dado por ele e que esteve em poder de seus herdeiros por 140
anos?!
Vasco Coutinho é mais uma das figuras injustiçadas da historiografia
oficial, com a parcialidade do lugar em que se situa o historiador. Felizmente,
existe a Literatura, irmã e rival da História, que recria a realidade, sem assumir
verdade escrita alguma, pois se propõe como ficção, invenção. A Literatura
busca, apenas, um outro olhar sobre a realidade. O personagem histórico
Vasco Fernandes Coutinho (1488?-1561) já nos rendeu quatro obras ficcionais:
Vilão Farto, de Renato Pacheco; O Capitão do Fim, de Luiz Guilherme Santos
Neves; Vasco Fernandes Coutinho (Col. Grandes Nomes do ES), de Alvarito
Mendes Filho e, agora, Vasco, Memórias de um Precursor da Globalização, de
Cláudio A. Lachini. Cada um deles traz ao leitor aspectos diversos desse controvertido ser humano. Literariamente, destaca-se o de Luiz Guilherme, pelo
trabalho com a linguagem, a ironia, o dialogismo intertextual com a história,
a literatura, o folclore, o teatro; referencialmente, o de Cláudio Lachini é mais
rico, pois traz informações inéditas sobre a vida de Vasco Coutinho, o V de
sua família de nobres portugueses com o
mesmo nome, antes de vir para o Espírito
Santo. Apoiando-se em fontes documentais, Lachini constrói um romance memorialista, em “flashback”, mesmo recurso
utilizado por Luiz Guilherme. A diferença é
que neste a memória do narrador recua ao
tempo de sua chegada à sua Capitania, em
1535, enquanto naquele a lembrança dos
fatos reconstrói a história da navegação
portuguesa, a partir de 1488, provável data
do nascimento de Vasco, em que seu pai,
irmãos, tios e primos também atuaram.
Vasco Coutinho não foi um “infeliz donatário”. Escolheu o Espírito Santo
para viver seus últimos dias, como também o fizeram frei Pedro Palácios e padre
Anchieta. Os três vieram em busca de um
sonho, tiveram uma vida bem mais longa
do que seus contemporâneos e alcançaram seus objetivos, de certa maneira. No
Espírito Santo, a “terra sem males” dos
guaranis, encontraram o lugar para descanso de seus ossos, pois “...um bom lugar
para se viver é também um abrigo para se
morrer”. Que a leitura dessas obras deem ao leitor de nossos dias o imaginário
para reconstruir esse tempo passado e essa figura fundadora de nossa civilização, que ousou atravessar os mares dantes nunca navegados, buscando um
novo mundo, pois “quem não sonha não conquista”.