Julho, 2021 - Edição 269
Samuel Rawet no seu labirinto
Há 37 anos morria em Brasília, dramaticamente, o escritor Samuel
Rawet. Mais especificamente em Sobradinho. Solitário, de ataque cardíaco, aos 55 anos de idade.
Ele nasceu em 23 de julho de 1929, na aldeia de Klimontow, na
Polônia, de pais judeus. Nome completo: Samuel Urys Rawet. Chegou
ao Rio de Janeiro aos 7 anos de idade e foi morar com a família nos
subúrbios (Ramos e depois Olaria), passando infância pobre. “Aprendeu
português como poucos brasileiros”, escreveu Napoleão Valadares no
seu Dicionário de Escritores de Brasília, já em 4ª edição. Formou-se
em Engenharia. Integrou a equipe de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa,
Joaquim Cardozo (também poeta, e dos bons), Carlos Magalhães da
Silveira (recentemente falecido em Brasília, aos 88 anos, ex-genro de
Oscar Niemeyer). Trabalhando com o pernambucano Joaquim Cardozo,
Samuel Rawet fez inúmeros cálculos para edifícios de Brasília. Assim,
o engenheiro e já contista famoso ajudou a construir a nova capital
do Brasil, saga comandada pelo presidente Juscelino Kubitschek de
Oliveira.
Foi contista, novelista, teatrólogo e ensaísta.
Em 1956, Rawet publicou seu livro de maior sucesso, Contos do
Imigrante. Livro doloroso, angustiante, como foi e como seria a vida
do autor, que rompeu com o judaísmo e a família. Há um clima de
Dostoiévski e um travo de angústia de Kafka em seus contos e novelas.
Aqui em Brasília, ele se tornou “O Solitário Caminhante do Planalto”,
título de uma entrevista que fiz com ele para o “Suplemento Literário
do Minas Gerais” (então dirigido pelo saudoso Wilson Castelo Branco)
e que depois publiquei no meu livro Escritores Brasileiros Ao Vivo,
Entrevistas, vol. 1, Ed. Comunicação/ INL, 1979. Essa entrevista de
1976 está mencionada na bibliografia sobre o escritor, no livro Contos
e Novelas Reunidos, de Samuel Rawet, editado e prefaciado por André
Seffrin, com “orelhas” de Flávio Moreira da Costa.
Tive a honra de escrever um longo prefácio para o volume Dez
Contos Escolhidos de Samuel Rawet, da Editora Horizonte, de Brasília,
por recomendação do crítico literário Almeida Fischer. Esse volume é
de 1982. Em 1997, Ézio Flavio Bazzo publicou um livro sobre o autor
polaco-brasileiro, Rapsódia a Samel Rawet.
Samuel Rawet foi um escritor criativo, inovador, sensível, culto,
eu diria mesmo genial, como o atestam os que se debruçaram sobre
sua sofrida obra de “judeu errante”, sempre exilado, irrequieto. Flávio
Moreira da Costa o incluiu na antologia Os 100 Melhores Contos de
Crime e Mistério da Literatura Universal e Ronaldo Cagiano deu-lhe
destaque na sua Antologia do Conto Brasiliense
Conheci-o em Brasília quando aqui cheguei, em março de 1975,
vindo de Belo Horizonte. Em 1976, meu filho mais velho, Rodrigo, tinha
quatro anos de idade e frequentava o jardim de infância na SQS 303. Eu
o levava à escola quando minha mulher não podia fazer isso. Ali, nas
imediações, algumas vezes me encontrei com o escritor, naquelas claras
manhãs, pois ele, de bermuda, passeava pelas quadras próximas, morador que era de uma delas, acho que a 105 Sul. Batíamos um rápido papo.
Estava sempre alegre, risonho. E passava a mão, num gesto paternal, na
cabeça do menino Rodrigo.
Eu encontrava Rawet também nas reuniões da Associação
Nacional de Escritores – ANE, então sediada na 415 Sul. Ele era associado. Cordiais conversas. Entrava na roda da cerveja. Em geral, Rawet não
demonstrava amargura, tristeza aguda, isolamento. Ele tinha momentos
de alegria, confraternização, convivência. Mas nós o sabíamos um prisioneiro da melancolia e mesmo da revolta. Ele devia sentir-se, talvez,
um “poète maudit”, na sombria linha de Baudelaire, Mallarmé, Verlaine,
Rimbaud. Gostava, sim, da solidão. No extinto caderno “Pensar”, do
Correio Braziliense, de quase 20 anos atrás, li um ótimo ensaio que sobre
o ficcionista escreveu Stefania Chiarelli, então doutoranda em Estudos
de Literatura na PUC-Rio. Ela assim sintetizava a vida do famoso prosador: “errância, exílio, isolamento.”
Num almoço na casa da escritora Branca Bakaj e seu marido, o
arquiteto Mário Bakaj, em 2004, o poeta Cassiano Nunes nos disse:
“Samuel Rawet foi uma figura trágica, vangoghiana.” Os dois eram
muito amigos. E já não pertencem a este mundo.
Ele buscou a solidão para morrer. Nos últimos anos de vida,
apresentava sinais de distúrbios mentais, acentuados desequilíbrios
de comportamento, mania de perseguição, procura de imaginários
culpados para umas tantas mazelas. Entrou num mundo de paranoias.
O “judeu errante”, o ser humano cheio de conflitos, o autor “maldito”
e automarginalizado, rebelde, neurótico. Morreu em 25 de agosto de
1984. Foi encontrado depois de vários dias da ocorrência do óbito, em
Sobradinho, DF.
De sua bibliografia, constam estes livros: Contos do Imigrante;
Diálogo; Abama; Os Sete Sonhos; O Terreno de uma Polegada Quadrada;
Consciência e Valor; Viagens de Ahasverus à Terra Alheia; Devaneios de
um Solitário Aprendiz de Ironia; Alienação e Realidade; Eu, Tu e Ele;
Angústia e Conhecimento e, ainda, Que os Mortos Enterrem seus Mortos.
Prefiro me lembrar dele nas nossas animadas conversas regadas
a cerveja, na então sede da ANE. Prefiro me lembrar dele de bermuda,
alegre sob o sol brasiliano, nas manhãs daquele ano de 1976, afagando
a cabeça do meu filho, hoje com 49 anos. Carinho que ele talvez não
tivesse tido quando menino na sua Polônia natal. E no Rio. O que talvez
tenha ajudado a marcar sua dolorosa angústia pela vida afora…
Brasília, junho de 2021.