Julho, 2021 - Edição 269
Gíria alimentar
O homem, assim como a maioria dos animais, tem dois instintos
básicos: o da conservação da espécie e o da conservação do indivíduo.
O primeiro, que é o instinto sexual, leva-o a acasalar-se, a constituir
família, a ter prole. O segundo leva-o a procurar alimento para manter-
-se vivo.
No primeiro caso, a satisfação do instinto depende só dele. Mas o
segundo depende também do governo, da previdência social, da economia, do emprego... Por isso, a preocupação com a própria sobrevivência
é algo que não depende apenas do interessado. Como o Brasil é um
país ainda subdesenvolvido (ou, como querem os otimistas, em vias de
desenvolvimento), o povo é faminto. Se, na maioria dos países, a gíria,
que é a expressão da alma e da criatividade do povo, é basicamente
sexual, é apenas na língua portuguesa do Brasil, que eu saiba, que a gíria
também se compõe, ao lado das expressões relacionadas ao sexo, de
muitos termos associados à alimentação, como: estar nos seus azeites
(estar de mau humor), dar um bolo (faltar a um compromisso), ser rei da
cocada preta (achar-se o tal), ser canja (ser coisa fácil), chá de sumiço,
tudo acaba em pizza (sem punição), aquilo é uma marmelada (trapaça),
ser farinha do mesmo saco (ser da mesma laia), pão-pão, queijo-queijo
(sem rodeios), comer o pão que o diabo amassou (passar por dificuldades), tem caroço embaixo desse angu, pôr azeitona na minha empada,
ser sopa no mel (ser fácil), estar por cima da carne seca (estar em posição elevada), dar um caldo (enfiar a cabeça de alguém na água), pão
(homem bonito), fazer biscoito para viagem (estar muito doente, reminiscência das viagens marítimas em que o biscoito era alimento básico),
engolir frango (goleiro que não impede um gol, por descuido, no jogo de
futebol), prato cheio (fato que provoca zombaria), pôr em pratos limpos
(esclarecer) etc. Não é à toa que o verbo comer e o adjetivo gostoso associam a gíria sexual à da prática alimentar.
Muitos ditos populares retratam fases históricas. Assim, para lembrar os tempos das grandes navegações, temos expressões como: remar
contra a maré, ir de vento em popa, estar no mesmo barco, embarcar em
canoa furada, abordar alguém, deixar o barco correr, ficar a ver navios...
Da mesma forma, a gíria baseada em produtos do campo também
mostra o caráter tradicionalmente campesino do brasileiro, já que o
Brasil foi durante muito tempo um país essencialmente agrícola: plantar batatas (parar de chatear), dar uma banana (expressão vulgar que
designa um gesto de origem portuguesa, com conotação sexual), ter um
pepino nas mãos (ter problemas), um abacaxi (um problema difícil de
resolver), plantar bananeira (ficar de ponta-cabeça), xuxu, uva, doce de
coco (designativos de mulher bonita), favas contadas (algo inevitável),
cana (situação difícil de suportar, cadeia), fruta (homossexual passivo),
chorar pitanga (fazer choradeira) misturar alhos com bugalhos (misturar ou confundir coisas) etc.
Uma expressão, contudo, tem uma história bem recente. No
Nordeste, meninos ruivos (da cor da laranja) de olhos claros, diziam-se
descendentes de holandeses, ainda que o não fossem, e eram chamados
de “laranjos”. Assim, a palavra laranja passou a designar alguém que
se passa por outro, ou que lhe ocupa o lugar de maneira mentirosa ou
fraudulenta.
Como se vê, a gíria nos ensina mais que a própria vida...