Junho, 2021 - Edição 268

Sandra e os tempos digitais

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura

O principal objetivo da psicanalista Sandra Niskier Flanzer é a procura de mentes brilhantes.

Arnaldo Niskier: Hoje uma novidade para mim profundamente alegre. Trouxe minha filha, Drª Sandra Niskier Flanzer, para falar sobre tudo o que está se passando, principalmente no seio da juventude, em relação à pandemia. Ela é formada em psicanálise, doutora, tem o pós-doutorado, tem o mestrado em psicanálise e está lidando com esse assunto diariamente. Vou pedir a Sandra que diga o que a levou a esse tipo de trabalho.

Sandra Niskier Flanzer: O que me levou a esse trabalho foram meus 30 anos de experiência clínica como psicanalista, mas, sobretudo, um trabalho que venho realizando nos últimos dois anos numa ONG ligada a jovens aprendizes onde pude ouvir uma série de relatos, principalmente vindos dos professores e instrutores que trabalham com os jovens, de como para o jovem está muito difícil se concentrar, muito difícil realizar tarefas. São relatos cada vez maiores de casos de ansiedade, de depressão, de insônia chegando na clínica (acho que para todo mundo isso é visível) e no campo dos relacionamentos sociais. Essa foi a grande razão que me fez juntar toda essa experiência que já vinha colhendo também de escolas onde fazia alguns trabalhos tanto com os jovens quanto com os professores. Reuni algumas pesquisas atuais para fazer um livro, no qual pude tratar de todas essas questões ligadas à saúde mental.

Arnaldo Niskier: É esse livro que você lançou agora pela Editora Consultor e que teve o apoio do UNI-CIEE. A ONG a que você se refere é o CIEE ̶ Centro de Integração Empresa-Escola. Estou certo?

Sandra Niskier Flanzer: Exatamente. Lá pude ouvir relatos dramáticos de professores, de instrutores e de jovens que nos levam a achar que toda essa epidemia de hiperconectividade que nos assola (crianças, jovens e adultos) traz consequências psíquicas muito relevantes, seja para o campo do convívio social, seja para o campo particular da subjetividade de cada um. Arnaldo Niskier: Você diz que nós chegamos até a sofrer de angústia, que é uma coisa séria. Isso se registra também no seu trabalho.

Sandra Niskier Flanzer: Certamente, a angústia como esse sinal de que alguma coisa não vai bem, uma criança reflete seu mal-estar de formas muito variadas e diferentes de um adulto. Então existe também essa notícia de angústia entre crianças, entre adolescentes e entre adultos. O que procuro fazer no livro é um paralelo ou levantar algumas reflexões sobre a ligação dessa angústia ao excesso de uso de dispositivos digitais.

Arnaldo Niskier: De onde surgiu seu interesse pela psicanálise?

Sandra Niskier Flanzer: Me interessei pela psicanálise quando tinha 14 anos, tive um sonho e fiquei muito curiosa para saber o que o sonho queria dizer. Perguntei para meu pai o que o sonho queria dizer (ele talvez não se lembre disso) e me deu uma Enciclopédia Barsa, um verbete da letra F (Freud) para ler. Foi aí que a psicanálise começou na minha vida. Achei muito interessante esse estudioso de Viena, judeu, no final do século XIX, dizer que os sonhos são realizações de desejo e que os sonhos possuem um significado disfarçado do nosso desejo. Então, a partir daí, não voltei mais atrás. Tive certeza de que a psicanálise era o que queria.

Arnaldo Niskier: E você acha que os dados com que conta a psicanálise são atuais?

Sandra Niskier Flanzer: Sem dúvida. Eles são uma prática crítica, embora Freud tenha se dedicado a muitos artigos, digamos assim, sociológicos, porque não são “antropológicos” também, que dão conta do que é nossa dinâmica no social, a psicanálise é uma prática clínica e como prática já existe há mais de um século, um século e 20 anos efetivamente. Se puder fazer um paralelo com o tema aqui do nosso debate, diria o seguinte: a psicanálise é essa prática que lida com a efervescência do inconsciente, aquele pontinho do sujeito onde ele é comandado por alguma coisa e não está no poder e no comando. Esse inconsciente que aparece de várias formas está sendo negligenciado, cada vez mais, pelo excesso de uso dos dispositivos tecnológicos. A tecnologia é muito positiva para nossa cultura. Salvou a humanidade em tempos de pandemia, permitiu que conseguíssemos continuar nosso contato social com o outro, continuar nosso ensino remotamente. Ela traz uma série de benefícios inequívocos e irrevogáveis, mas a tecnologia traz também um certo apagamento da dimensão inconsciente na medida em que todos nós ficamos um pouco pasteurizados, levados por esses algoritmos com pouco espaço para nossa singularidade, com pouco espaço para nossa voz e para as manifestações inconscientes que são sempre particulares e singulares. Então, a meu ver, esse é o alerta que o excesso de uso de dispositivos tecnológicos obrigatoriamente hoje nos faz ver.

Arnaldo Niskier: O livro Jovens em tempos digitais editado pelo CIEE de São Paulo está fazendo uma carreira muito bonita. Queria que você sintetizasse o conteúdo desta obra. É importante para nós.

Sandra Niskier Flanzer:Muito obrigada pela oportunidade de poder fazer isso. Com muito prazer que fiz esse livro como resultado de muito tempo de escuta sobre as questões subjetivas que a contemporaneidade tem trazido para o profissional de saúde mental. Questões como um aumento muito grande de casos de ansiedade, de formas diferentes de ansiedade, um aumento muito preocupante de casos de depressão, ideias de automutilação, ideias suicidas. Estamos percebendo, de modo geral na saúde mental, um acréscimo, de cinco, dez anos para cá, de todos esses casos. Há muitos relatos particulares, mas que sabemos que são amplos de distúrbios de alimentação, dificuldades de sono etc.

Arnaldo Niskier: E qual seria o conselho principal que você daria aos professores dentro desse quadro?

Sandra Niskier Flanzer: São muitos os problemas e desafios observados pelos professores atualmente, como fazer um conteúdo ser interessante no contato físico do dia a dia que vai, em breve, ser retomado. Meu conselho para essas questões, que já são pululantes há muito tempo, de alguns anos para cá mais ainda, é que os professores não desistam de fazer passar, de fazer transmitir o que eles têm a transmitir de um profissional da educação para um sujeito, que eles apostem que ali há um sujeito, que eles apostem que ali não há mais um número, mais um seguidor. E que a educação possa sair desse registro, que já estamos tão contaminados na tecnologia e por conta da predominância disso, que é o registro humano, apostar que ali tem gente, que você está falando para alguém que escuta e que talvez você troque palavras e faça um ato falho e erre e ele também possa ouvir diferente daquilo que você disse, mas que por isso haja trabalho, por isso haja transmissão. A aposta de que ali é um lugar onde o conteúdo é passado de uma pessoa para outra e tem gente é o principal que posso sugerir para um professor e para um profissional da educação agora.

Arnaldo Niskier: Vamos esperar que essas coisas todas aconteçam. Acho que, daqui a pouco, a pandemia vai acabar, porque ela não é eterna, sabemos disso, já fez o sofrimento do nosso povo por muito tempo. Acho que as notícias que vem dos especialistas são boas, de que estamos no caminho da supressão desse mal e vamos voltar à normalidade, que é o que mais desejamos. Como se adquire esse livro?

Sandra Niskier Flanzer: O livro já está disponível em formato Kindle na Amazon, por falar em dispositivos eletrônicos. Para quem pode aproveitar isso, é fácil a aquisição. Caso não, existe uma livraria dentro da UFRJ, chamada Universo Psi, que entrega para o Brasil todo. Encomendas através da Universo Psi são muito simples, é só procurar na internet, no Instagram e é fácil achar, é só pedir que eles entregam.

Arnaldo Niskier: As duas coisas: inclusão e exclusão.

Sandra Niskier Flanzer: Por um lado, o sujeito está cada vez mais dentro dele mesmo, fechado nele mesmo, quase numa bolha narcísica onde ali tem tudo, não precisa de nada. É um objeto que serve ao sujeito de maneira total, como os objetos de adicção, só que com um agravante: você não tem a separação como você tem com todos os outros objetos de adicção, uma mínima separação. O celular não se separa do corpo mais.

Arnaldo Niskier: Na psicanálise, fala-se muito de Freud, fala-se muito também em Lacan. Quem mais você citaria entre seus autores preferidos na psicanálise?

Sandra Niskier Flanzer:Esses dois são a base da psicanálise que me formou aqui no Rio de Janeiro de 30 anos para cá, mas existem autores contemporâneos interessantíssimos. Existe um autor chamado Charles Melman, que tem um livro intitulado O Homem sem Gravidade (ele escreveu isso há 20 e poucos anos, na virada do século), um livro que contempla todas essas questões que hoje estou podendo abordar no meu livro. Elas já estavam anunciadas ali pelo Melman, psicanalista francês, desde a virada do século. Poderia citar ele também como referência para mim, mas cito vários autores contemporâneos que são muito acessíveis e estão aí escrevendo sobre isso, falando também sobre isso, se utilizando das próprias redes sociais...

Arnaldo Niskier: É uma ciência em plena evolução. Não é coisa do passado.

Sandra Niskier Flanzer: A psicanálise nem luta para ser uma ciência. Ela é uma prática clínica, que certamente não é coisa do passado. Vemos cada vez mais a emergência de casos, muito evidentemente, da psicanálise, que a psicanálise tem que se ocupar. Falamos aqui da angústia, falamos da ansiedade, a hiperatividade que foi tomada pela psiquiatria, criou-se um remédio junto com esse diagnóstico e vamos percebendo a medicalização excessiva das crianças, um embotamento das crianças em vez de dizer o que sentem, em vez de buscar seu lugar ao mundo e acalmar essa falta de lugar. Nada mais é do que isso a hiperatividade, algo da psicanálise e não da psiquiatria ou da ciência.

Sandra e os tempos digitais - Entrevista com Sandra Niskier transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado por Arnaldo Niskier no canal Futura