Julho, 2021 - Edição 269

As memórias de João Almino: um romance sobre a liberdade e a felicidade

Há tempos venho acompanhando a ascendência romanesca do universo artístico de João Almino (1950-). É espantosa a sua criatividade, tecida com a estilística e a estética de um clássico. Não à toa, o romancista gaúcho Moacyr Scliar dissera que João Almino está “entre os melhores autores de nosso país. O Brasil está resumido em suas páginas, que são verdadeiramente antológicas”.

Até o presente ano apocalíptico de 2021, a sua trajetória literária já agrupa sete romances (número cabalístico), sendo o seu livro de estreia: Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo (Editora Brasiliense, 1987, e em segunda edição pela Record, de 2002), um dos aicebergues da sua produção. Esta obra, apesar de publicada 34 anos atrás, é de uma atualidade impressionante.

Aparenta-me ter sido escrita nas sombras das incertezas de 2020, não apenas pelo agudo título utópico, mas também pela ampla temática realista, que abarca racismo, feminismo, sexualidade, machismo, mudanças climáticas e naturais, revoluções, guerras, conflitos entre a ciência e a política, democracia, que são tônicas do hodierno e caras à nossa existência em sociedade. João Almino criou uma peça definitiva, em que o misticismo, a inteligência e a loucura formam os liames para a aventura humana, alicerçados também na distopia, nos desencontros das personagens, que estruturam a sua narrativa fecunda e diáfana. Brasília, a menina dos olhos de João Almino, passou a ser o cenário mágico das suas reflexões.

De maneira perspicaz, esse nordestino norte rio-grandense de Mossoró trouxe para si a reinvenção de uma cidade inaugural: “Brasília entrara há muitos anos na história querendo lançar o país no futuro.” Na realidade, Brasília ingressou total e ferozmente nas histórias de João Almino e o alçou a um alto plano meritório de ser o definitivo narrador da capital do Brasil, “berço esplêndido da nova humanidade”, como atestam as fortes iluminações neste exemplar Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo e em outros registros da sua lavra, como Samba-enredo (1994), As Cinco Estações do Amor (2001), O Livro das Emoções (2008), Cidade-livre (2010), Enigmas da Primavera (2015) e Entre Facas, Algodão (2017).

Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo possui uma ficção instigante e intrigante. É uma estória múltipla, onde há capítulos inesperados, revestidos de epifania e de erotismo. A presença de um narrador fantasma parece nublar o tempo. Inesperadamente, Brasília é Paris ou Paris é Brasília. As ruas do Planalto Central se confundem com os bulevares parisienses. E a atmosfera brasiliense é um presságio para a fuga. O excelentíssimo senhor presidente do Brasil é negro e se chama Paulo Antônio Fernandes, “filho adotivo de um general e primeiro negro da história do país a ser presidente”.

Paulo Antônio Fernandes não é a personagem mais importante, como tudo levará a crer. O principal elemento do romance é uma fotografia e o desenredo subsequente, que passa a ser também fruto da imaginação do leitor. Tudo se assemelha ao desconexo, como relâmpagos assustadores e barulhentos. As estórias são paralelas. O fantasma é um perdido fabulador e escreve um roteiro cinematográfico. A mulher do fantasma, de repente, é a romancista que reescreve as estórias criadas. Tudo está estagnado, como sonhos em frangalhos, palavras enganosas e desejos irrealizados: “o essencial, o fundamental, o mágico a gente alcança sem querer.”

Em uma linguagem poética e lúcida, alinhada a uma riqueza verbal deslumbrante e lírica, João Almino nos oferta um verdadeiro ensaio filosófico e sociológico sobre a liberdade e a felicidade. Berenice, Tõezinho, Zé Maria, Eva, Tita (Joana), Cadu, Íris, Madalena, Silvinha, Mário são símbolos e signos, mitografias de uma época de ilusões. São seres inesquecíveis, paralisantes, contemplativos e insondáveis. Conhecedor da tradição e reformulador da técnica, João Almino é um mestre na arte de transfigurar as estações e de projetar as memórias do futuro. Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo é uma música repartida, estonteante, um réquiem, um testemunho.

Por Diego Mendes Sousa