Junho, 2021 - Edição 268

Tempo de homens partidos

Tempo de comício. De correrias, tiroteios inesperados – havia. Só me lembro daquela sensação de ser levada de um lado para outro, de ficar espremida entre meu pai e minha mãe, na Praça da Sé, sufocada de calor lá embaixo, nos meus 4 anos. A zoeira, o desconforto, a vontade de fazer xixi e de chorar, aquela discurseira toda, as pessoas pareciam estar sempre zangadas – contra quem? – na Praça da Sé, que era a Maior Praça do Mundo, sempre um perigo para se atravessar, os carros que vinham de todo lado. E minha mãe contando, anos depois, “então nós fomos, levando a menina, ver o comício da Praça da Sé, e saiu tiroteio, e só tivemos tempo de sair correndo, pegar um bonde que passava ali na rua José Bonifácio e fugir”.
Em janeiro de 1994, ao ler a notícia da morte de Fúlvio Abramo, fiquei sabendo que ele “teve o poder de deter, organizando um comício, a marcha do integralismo entre nós”. Devia ser “o comício do bonde” de que se falava na família – que, aliás, era toda simpatizante dos integralistas.

O perigo, o terror. Alto-falante era uma vozona que vinha pegar criancinha, vozes muito zangadas, eu notava, parecia que de repente começariam a se matar. Não devia estar errada. Os registros históricos nos dizem que o “comício do bonde” acabou em tiroteio e mortes, mas a família cristã salvou-se a tempo. Uma voz ressoava, pelo alto-falante, nos comícios daqueles anos, uma voz forte, máscula: Mulheres de São Paulo! Era Dona Carolina Ribeiro, diretora da Escola Normal Caetano de Campos. A única mulher – é homem, mãe? – que discursava lá em cima. Com os homens. O principal medo era o dos comunistas. Eles sim viriam, matando criancinhas, invadindo as casas, enfeiando as moças, nos condenando a passar fome, nos colocando diante de pelotões de fuzilamento. O caldo da fervura dos anos 1930 engrossava-se com a Guerra Civil espanhola – que na família católica repercutia como o horror dos horrores porque os padres, coitados, eram obrigados a fugir.

– Sim, e fogem levando seu ouro escondido nos santos! A voz, indignada, era de Dona Anita, espanhola e mulher do seu Muñós, que era, aos meus olhos de medo, o único “monstro comunista” que eu conhecia – terrível, falava alto, dava murros na mesa enquanto discutia com meu pai, do qual fora companheiro de Congregação Mariana, católico de comunhão diária, um homem bom, diziam. Depois começou a ler muitos livros e ficou ruim, e todo mundo que lia muitos livros acabava indo para o inferno, eu sabia? A gente só pode ler os livros que o padre permite, ouviu?

Longos artigos, no montão de revistas católicas que enchiam a mesa da sala na casa de meus tios, os perigos das más leituras. Havia mesmo uma ilustração, O Caminho do Inferno, a boca do demônio escancarada lá no fundo, no caminho as pessoas lendo, despreocupadas, até caírem no caldeirão. Na Alemanha nazista, Hitler mandava queimar livros em piras gigantescas – minha mãe, depois da morte de meu pai, continuou pela vida inteira a queimar livros. No curso de Letras Neo-latinas da Faculdade Mackenzie, eu ia ler escondido na Biblioteca Mário de Andrade os autores que tinha de estudar, Flaubert, Zola, Balzac. Um dia, vinte anos mais tarde, sua piromania avançou a mão para o original de um conto meu, La Pietà – que alcançaria fama inclusive internacional – e o destruiu... Por essa época, eu havia aprendido a fazer cópias do que escrevia, é claro... Por enquanto, ainda tenho cinco anos, estou sentadinha no degrau da cozinha da casa do seu Muñós e morrendo de medo porque ele vai matar meu pai, e querendo ir embora logo, e acho que fomos mesmo, e nunca mais voltamos. E seu Muñós tinha um filho que era muito gordo e andava de motocicleta, uma coisa potentíssima e barulhenta que me fazia também muito medo, Francisco, se chamava ele, e morreu moço, do coração, e eu pensava “bem-feito, quem mandou ser gordo, comunista, e ainda por cima andar de motocicleta”.

Todo domingo, meu tio Egídio vinha almoçar conosco – era solteirão, morava em um hotel e era professor como meu pai. Conversavam muito sobre educação, pedagogia – que seria aquilo. Entre o bom vinho Chianti que as crianças não podiam beber, e ainda com a boca vazando o molho rico da macarronada, concluíam, concordados, que todos os comunistas mereciam morrer na cadeira elétrica. Ou fuzilados – hoje, penso: estariam talvez justificando o fuzilamento de Garcia Lorca? Minha autovisão daquele momento da infância, a memória ressentida formando círculos em torno de um ponto só, nó, centro, e também palco do drama de três figuras: um pai que podia ser meu avô, a mãe vinte e dois anos mais moça e eu, menina autófaga se devorando num canto da sala de jantar. Que é o cômodo dos cômodos, grande, de passagem, barriga da casa cortando o corredor ao meio, amarela, símbolo da vida de todo dia, o sacrossanto. A Sagrada Família na estampa. Cômodo ativo, onde tudo acontecia. O rádio Telefunken, as visitas íntimas, a leitura, o bordado, o dever da escola... Mas houve um comício em particular que me deu um medo maior ainda. Pude presenciá-lo melhor, não mais “lá embaixo” vendo pernas de pessoas e amassada entre elas, mas do balcão de uma sala nobre do Colégio São Bento, aonde me levara meu pai.
– Por que todos estão vestidos de preto?
Devo ter perguntado meio alto e meu pai fez sinal para ficar quieta. Eu continuei, de olhão grande, observando aquelas pessoas estranhas, de porte rígido, inteiramente vestidas de luto, por quem seria? Até camisa preta fechada, e os padres beneditinos em seus hábitos também negros, e depois, no fim, por uma porta lateral entraram rígidos portadores de bandeiras inteiramente negras, que foram entusiasticamente recebidas com aplausos.

Empinadas, as bandeiras do Fascio se vangloriaram um instante, se pavonearam satisfeitas, mas depois – num gesto teatral ensaiado, – baixaram-se todas ao mesmo tempo.

E eu, de tanto susto, gritei. Escondi o rosto na calça do meu pai – que também parecia ser negra.

(Da autobiografia Sou Mulher, Logo, Não Existo)

Por Cecília Prada - Jornalista e escritora premiada, com 17 livros publicados, é membro da Academia Campinense de Letras. Em 2020, foi por esta indicada como candidata ao Prêmio Nobel de Literatura.