Junho, 2021 - Edição 268
Harpa

Que instrumento lindo é a harpa. As cordas, numa moldura aberta
de madeira, quando dedilhadas, fazem ressoar acordes secretos, misteriosos, tensos. Súbito, a terra liga-se ao céu, o instante a vibrações
espirituais, a certeza da morte ao destino eterno. Portais puros se abrem
como por encanto.
Antiga, a harpa procede dos ancestrais arcos de caça. O som que
era produzido quando as mãos retesavam a arma em direção ao alvo. A
pulsão rumo ao infinito. O equilíbrio entre a personalidade e o domínio
de si mesmo.
Talvez a harpa já existisse antes do dilúvio. Estava presente no
Egito e na Grécia. Tornou-se símbolo dos bretões celtas na ilha esmeralda da Irlanda e nos castelos medievais do País de Gales.
Para o judeu, a harpa de dez cordas, feitas com o intestino delgado
das ovelhas, era um atributo de Davi. Ele tocava sua harpa diante do rei
Saul, que logo sentia alívio de suas dores malignas. Quando, mais tarde,
o povo foi levado cativo para a Babilônia, à beira do rio Eufrates, sentaram e choraram, penduraram suas harpas no meio das longas folhas dos
salgueiros. Bem que aqueles que os destruíram pediam para que tocassem canções alegres. Quanto insulto! Como haveria alegria fora de Sião
e de Jerusalém? Que desespero, que emoção profunda há no lamento
dos exilados de todos os tempos.
A harpa pequena é uma cítara ou uma lira. A lira dos músicos
e dos poetas. A lira de Orfeu. Orfeu era filho do deus Apolo com uma
musa. Com seu canto suave, abrandava a natureza, ordenava as estações do ano, fascinava animais, aplacava as tempestades. Tudo e todos
se concentravam nele, pareciam dormir ao som das notas de um campoharmônico. Após a passagem do
poeta, uma peste, semelhante a esta que estamos vivendo, assolou a Trácia. Sua lira transformou-se numa constelação. É lá
no céu que os anjos e os poetas tocam harpas para sempre. A inquietação da beleza e o desejo
de ser feliz materializam-se num lirismo de adoração.
Nascida na fronteira do Brasil com o Paraguai, em terras
onde aconteceu o ciclo da erva--mate, conheci desde a infância
a harpa paraguaia típica, tocada com as unhas. As polcas, as
guarânias, as melodias ora lentas e melancólicas, ora rasqueadas,
inflamadas, heroicas, brotando entre os fios, saltando dos pedais.
Os tons claros, cálidos, glissando nas escalas. Os arpejos espanhóis misturados com a tradição dos índios
guaranis. Os passos, os gritos e giros de uma dança latino-americana.
Grande artista é Fábio Kaida. Uma figura cênica. O rosto de índio,
os cabelos longos e lisos ultrapassando a cintura, manto que se movimenta enquanto ele gruda a harpa ao seu corpo. Focado, cria arranjos
sofisticados, modernos, sem nunca perder suas origens, suas raízes. Por
quais nevoeiros andará ele com sua harpa paraguaia?
Instrumento lindo. Só me resta cantar. Um canto pungente, que
faça cessar os suplícios dos condenados. Ouço sons de harpa ecoarem
das profundezas do abismo.