Junho, 2021 - Edição 268

Harpa

Adeus à madeleine de Proust
Parece “primeiro de abril”, mas não é. Foram realmente publicados no dia 1° de abril de 2021, ou seja, recentemente, novos manuscritos de Proust (1871- 1922), em Paris. Uma surpresa que deixou o mundo proustiano em polvorosa.

Manuscritos inéditos? Como assim? Onde estavam? Pois foi o que aconteceu: intitulados Les soixante-quinze feuillets et autres manuscrits inédits (Paris: Gallimard, 2021), os originais de Em Busca do Tempo Perdido, que se encontravam guardados a sete chaves pelo editor Bernard de Fallois há quase setenta anos, foram descobertos após sua morte, em 2018, e finalmente revelados. Diz Corine Azzopardi, do francetvinfo.fr – canal de cultura da França –, que se trata de uma “cápsula do tempo inacreditável, Graal proustiano, que explica a gênese de Em Busca do Tempo Perdido. Descobriu-se, entre outros, como Proust, a partir do cheiro de um pão torrado, inventou sua famosa madeleine, ponto central a partir do qual se organiza a temporalidade no romance”.

A incrível história dessa publicação põe fim, segundo Corine, a uma especulação que vinha desde 1954 sobre o paradeiro desses cadernos, cuja existência no entanto era conhecida, pois Bernard já havia se referido a eles elipticamente; mas ninguém sabia onde estavam. Estavam na casa dele. E, somente após sua morte, a Biblioteca Nacional da França, a quem os textos foram legados, pôde ver essa descoberta incrível, bem como os especialistas de primeira linha e a sobrinha-bisneta de Proust, Nathalie Mauriac. Nesses 75 cadernos, está contido o esboço da obra grandiosa do autor, desnudando todo o seu processo de criação – com suas hesitações, rasuras, repetições, sua alma a nu, antes que as pistas fossem embaralhadas no romance, diz ela. Com linhas riscadas, passagens apagadas, outras ilegíveis, a Gallimard optou por deixá-los como estão para que o leitor possa ter a impressão verdadeira da criação e perceber o trabalho em curso da obra, que deixará, sem dúvida, a comunidade proustiana de leitores fascinada com a aparição desses novos velhos manuscritos, já tornados fetiche, ainda mais porque foram escritos após dois anos sem nenhuma linha, deprimido que estava pela morte da mãe Jeanne Weil, em 1905. Nesse período, Proust só conseguiu escrever alguns artigos. Mas, de repente, mergulhou naquela que seria a grande obra de sua vida, esboçando as personagens que balizaram Em Busca do Tempo Perdido, ainda segundo Corine. Com prefácio de Jean-Yves Tadié, autor de monumental biografia de Proust, no qual ressalta que este é um documento capital e, citando Michelet, diz que geralmente desconhecemos “o momento sagrado quando o escritor começa a escrever”. E enfatiza que, sim, esse é “maravilhosamente chamado um momento sagrado.” Nesses manuscritos, os elementos biográficos saltam aos olhos: aí estão a vó do pequeno Marcel, sua tia, seu tio, todos com seus nomes verdadeiros, o que na obra definitiva foi disfarçado.

Para Corine, muitos autores se dariam por satisfeitos com esse primeiro esboço, mas, para Proust, foi apenas o ponto de partida de uma obra gigantesca com 500 personagens, abordando todos os temas possíveis: arte, música, pintura, o sentido da vida e, claro, a memória. E descobrimos também o ancestral da madeleine, o pão duro, torrado, mergulhado não no chá, mas numa tisana. Em Proust, tudo tem uma origem, sobretudo o tempo, e tudo está destinado a transformação, até atingir a perfeição. Tudo isso a partir de um simples pão torrado transformado em madeleine, tornado o ponto central da temporalidade de uma obra total.

Mas essa descoberta deixou também um gosto amargo na boca. Sem a doce madeleine com perfume de baunilha, na forma de conchinha, única, inigualável, que sempre nos lembra Proust, ficamos com o mesmo desapontamento de quando um dia descobrimos que Papai Noel é o pai da gente...

Como livro puxa livro, não poderíamos deixar de mencionar aqui Sobretudo de Proust (RJ: Rocco, 2012), de Lorenza Foschini, jornalista italiana que, com emoção, viu-se, depois de muita pesquisa, diante de uma caixa etiquetada “Manteau de Proust”, no Museu Carnavalet, em Paris. Nesse livro, acompanhamos a trajetória dos pertences de Marcel Proust após a morte de Robert Proust, médico e único irmão (caçula) do escritor que até então era o guardião de seus escritos, objetos pessoais e móveis – que talvez tivessem literalmente desaparecido –, como muitas cartas que tiveram o destino do fogo, numa espécie de auto-de-fé realizado pela viúva de Robert que não só não tinha interesse pelos escritos do cunhado famoso, como queria livrar-se de cartas que considerava embaraçosas para a família, em razão da homossexualidade do escritor.

Mas, graças ao trabalho detetivesco de Jacques Guérin, milionário do ramo da perfumaria e apaixonado pela obra de Proust, quis o destino que muita coisa fosse salva, desde a cama em que, como um náufrago agarrado a uma tábua, ou um prisioneiro no quarto de cortiça, vítima da doença que o isolava do mundo, o autor escreveu sua obra extraordinária.

A despeito de todos os objetos que importam, porque foram parte da vida de Proust, o que mais chamou a atenção de Lorenza foi o casaco, que parece fazer parte da maldição de casacos desde O capote, de Gógol, em que esse vestuário ganha vida própria. O sobretudo de Proust, após sua morte, ganhou pernas e foi a lugares onde o dono jamais pensaria em ir: passeou e respirou ar gelado, aqueceu outra pessoa em passeio de barco no rio Sena, fez todo tipo de estripulias sem nenhum cuidado, impensáveis para o imóvel escritor, vítima de uma asma que o consumiu e o levou à morte aos 51 anos de idade, em 1922. Aliás, neste ano de 1921, comemoramos os 150 anos de seu nascimento. O sobretudo teve vida mais longa que o dono, pois, mesmo maltratado, em estado que não permite mais exibição pública, continua vivo, guardado no lindo museu, com a memória em cada fio do tecido dos momentos vividos no hotel Ritz em jantares intermináveis que seguiam madrugada afora, onipresente também em suas fotos e retratado de modo expressivo em desenho de Jean Cocteau. Memória de um tempo perdido, de quando aquecia os pés de Proust em sua cama de ferro, que também se encontra no Carnavalet, salva, por um triz, do descaso e do esquecimento pelo dedicado Guérin.

Esse sobretudo preto, com gola de pele, todo forrado, como a lâmpada de Mallarmé, é testemunha do tormento do autor, que varava noites trabalhando e que nos deixou a maior obra da literatura francesa do século 20 e quiçá de toda a modernidade.

Por Vera Lucia de Oliveira - Membro da Academia de Letras do Brasil