Maio, 2021 - Edição 267

Sua Majestade Brás Cubas

Não há ser mais cruel do que uma criança, disse Freud. Com certeza, ele ficaria encantado em ver que tinha razão se pudesse ter lido Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis.
O capítulo intitulado “O menino é pai do homem” exemplifica muito bem e vai ao cerne dessa questão mostrando os lineamentos do menino no comportamento do adulto. O pequeno Brás Cubas, que ao nascer já era o que Freud chamou “Sua Majestade, o bebê”, foi saudado como um verdadeiro representante dos Cubas, a flor, o herói, a quem seriam destinados feitos extraordinários, na expectativa do pai e dos tios. Desse bebê rechonchudo passamos ao menino esperto, levado, mal educado mesmo, pois contava com a benevolência do pai adorador e da mãe ausente no quesito educação, pois esta era só coração, como disse o defunto Brás Cubas: “Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração”, ou seja, não era adepta de racionalismos, e sim, de afetos no trato familiar. O fato é que o defunto narrador destaca os seus malfeitos contemporizados pelo pai orgulhoso do filho peralta, no qual via um grande temperamento a desabrochar. “Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro!”, dizia o pai narcísico, encantado, que se via renascido em sua criatura que lhe concretizaria os sonhos de grandeza.

Para Freud, todos os conflitos psicológicos se situam na infância. Assim, consideramos que a cena da infância em que as maldades do menino são acobertadas pelo pai revela muito do adulto Brás Cubas. Vejamos: Por exemplo, “um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinzas no tacho, e, não satisfeito, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos”.

Essa passagem revela muito do adulto, que reputamos perverso, como se a ausência daquele doce de coco tivesse deixado sua vida amarga, pois foi cruel em maior ou menor escala com todos que atravessaram o seu caminho. Foi contrariado pela escrava, a quem quebrou a cabeça, abonado pelo pai, que em particular lhe dava beijos, e seguiu vida afora se vingando de quem se lhe opusesse. O resultado é que Brás Cubas teve uma péssima ideia da progenitura e, por extensão, dos homens, a tudo e a todos negando, como atesta a frase final do romance: “– Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”.

Pensamos que esse sentimento de fracasso se deu a partir do momento em que o menino “venceu” o pai que, ao contemporizar com suas diabruras, fez perceber que, por trás de tanta benevolência, se escondia uma fraqueza de caráter ou, pior, uma displicência em relação ao filho; o pai falhou ao não barrar a agressividade desmedida do menino regido pelo princípio do prazer, aquele impulso inconsciente – segundo a psicanálise de Freud – que não conhece o certo nem o errado, que só deseja realizar o que lhe dá satisfação, prazer. Falhou o pai porque não fez a criança conhecer o princípio da realidade, este regulador que situa o sujeito nas questões éticas e morais da sociedade, e que, curiosamente, é o guardião do princípio do prazer em defesa do ego, para que este não se perca. O desprazer equilibra o prazer, preserva o equilíbrio do ego e conduz ao prazer real, ainda segundo Freud.

Mas o menino Brás Cubas não conhecia a palavra “não” e, quando o tio fazia observar ao pai seus excessos, ele respondia que adotava na educação do filho um método inteiramente superior ao usado. “Iludiase a si próprio”, como oberva o adulto; mas não iludiu o menino nem o narrador defunto... Assim, cresceu ele naturalmente como “os gatos e as magnólias”, afeiçoado a todo tipo de injustiça, inclinado a atenuá-la, como confessa dolorosamente – mais que ironicamente. Não teve limites. E, como não conhecia Freud, nem Freud era o que viria a ser, Brás Cubas, numa visão determinista, atribui a frouxidão de seu caráter, a sua frivolidade, a sua formação, enfim, ao meio familiar e social, dizendo: “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.”

Por Vera Lúcia de Oliveira, professora e da Academia de Letras do Brasil.