Maio, 2021 - Edição 267

Reflexões sobre a arte da escrita

O amor à poesia e a generosidade do Professor Antonio Carlos Secchin

Em seu livro Pedagogia da Autonomia, o educador Paulo Freire (1921-1997) nos ensina, dentre outros elementos, a respeito do ato de educar, que ensinar “exige segurança, competência profissional e generosidade”. Ao encontro dessa percepção, de fato, percebo que todos os grandes professores, homens e mulheres que tive a oportunidade de conhecer, são guiados pelos valores do “conhecimento” e da “generosidade”. Para grandes professores, ao lado do desejo de conhecimento e do labor incansável para construí-lo, assenta-se sempre a missão de partilhá-lo. Ao que tudo me parece fazer crer, esses professores parecem estar imbuídos de um ideal que ultrapassa os desejos, algumas vezes simplórios, outras vezes mesquinhos, de um reconhecimento puramente pessoal. No caso da arte da escrita, se a pessoa que compartilha conhecimentos, além de um grande professor, é, também, um grande escritor, a generosidade se faz ainda mais evidente, porque não guarda para si o suposto “mistério” ou “segredo” de sua escrita, mas a desvenda, colocando-a, corajosamente, sob escrutínio do outro a fim de compartilhar com a humanidade aquilo que levou anos para construir.

É sabido que a internet fez emergir muitos aspectos negativos da humanidade, muitas vezes, se tornando um campo minado em que se encontram armadilhas textuais, premissas falsas, fake news, meias verdades, omissões que deturpam a leitura e os saberes humanos já constituídos, como a ciência. Em meio a tudo isso, é um alívio quando encontramos na worldwide webespaços em que o saber é tratado de forma elevada. Um desses raros exemplos é o trabalho desenvolvido pelo escritor e professor Antonio Carlos Secchin em sua página pessoal e naquela intitulada“Secchin, poeta e professor”, ambas na plataforma do Facebook. Ali é possível encontrar análises literárias que unem profundidade epistemológica e bom humor. Nesses espaços, ele analisa poemas seus e de outros escritores com a mesma imparcialidade. Sempre de modo crítico, inteligente e construtivo, visando a melhor formação do leitor. Secchin trata com o mesmo respeito poetas clássicos e contemporâneos em um verdadeiro ato de amor à arte poética.

Além de seus próprios poemas, aparecem nessas aulas muitos outros autores. Secchin realiza comparações só possíveis ao grande leitor que ele é e nos chama atenção para aspectos que podem passar despercebidos ao leitor menos atento. Em uma análise de um dado poema, ele explica a alternância métrica entre decassílabos nos versos ímpares e dodecassílabos nos pares, para, logo em seguida, nos explicar as características das rimas toantes e consonantes. Ao explicar outro poema, ele nos lembra de características da escrita dos poetas românticos para, logo em seguida, traçar paralelos com a escrita de João Cabral (1920-1999). Em outro momento, ele traz um poema de Carlos Pena Filho (1929-1960), que nos remete ao trabalho de Baudelaire (1821-1867). Mais adiante, Secchin fala das possibilidades interpretativas de um poema de Luiz de Góngora (1561-1627) e do uso da onomatopeia, da aliteração e da assonância na poesia. Em outra aula, ele traz a poesia de Guimarães Júnior (1845- 1898) e a de Castro Alves (1847-1871) para falar da capacidade evocativa do poema. Mais adiante, nos apresenta um poema esquecido de Cecília Meireles (1901-1964).

Em outro texto, nos dá uma bela lição de antonímia e antítese. Enfim, são muitos os temas trabalhados e os textos analisados por Secchin em suas páginas. Uma coisa é compartilhar a poesia como faz qualquer escritor, mas o professor Secchin aproveita o espaço público para dar aulas sobre diferentes especificidades da poesia, congregando e democratizando saberes que são, muitas vezes, de difícil acesso. É preciso dizer que o amor à poesia e a generosidade de Secchin não são qualidades que se configurem apenas no mundo virtual, em seus anos de atuação na Faculdade de Letras da UFRJ, seus alunos e todos os que com ele trabalharam foram testemunhas de seu rigor epistemológico e dessa mesma generosidade em compartilhar saberes. Provas disso podem ser encontradas nos muitos relatos colhidos no livro Secchin, uma vida em Letras, de 2013, organizado pelos professores Maria Lúcia G. de Farias e Godofredo de Oliveira.

Em um contexto histórico em que a internet tem sido utilizada por grupos radicais a fim de mobilizarem campanhas para atacar, de várias formas, os estados democráticos e todos aqueles que conseguiram garantias de direitos dentro desses estados, para espalharem o negacionismo da ciência em meio à pandemia de Covid-19 (que tem levado à morte centenas de pessoas no mundo e, principalmente, no Brasil), em que empresas como a Cambridge Analytica fazem uso da web para “algoritimizar” a vida das pessoas, em um momento de tensão, em que o ato de ler implica escolhas que atingem nossas vidas, as aulas de Secchin nos levam a pensar, também, na importância de nos comprometermos com uma educação para a liberdade, para a autonomia e para a fundamentação de sociedades realmente democráticas, em que as benesses e as responsabilidades do estado democrático de direito possam ser partilhadas por todas as pessoas, independentemente de cor, origem, religião, gênero etc.

No atual cenário, o trabalho de divulgação da literatura realizado pelo escritor e professor Antonio Carlos Secchin é um verdadeiro ato democrático porque possibilita um espaço compartilhado de leitura, porque, ao partilhar saberes sobre a arte da escrita, torna viva a grande asserção de outro grande mestre, o professor Antônio Cândido (1918-2017), de que a literatura é um direito e não um privilégio e porque nos mostra que, como bem postulou Freire em seu livro Educação como Prática da Liberdade (1967), não existe educação fora das sociedades humanas e não existe ser humano em um espaço vazio. O trabalho de interpretação da arte poética que Secchin realiza em suas páginas, dentre outros aspectos, nos mostra, ainda, a importância de se formar professores críticos para a formação de leitores críticos. Por isso, apenas formas de educação que trabalhem o ato de ler como um caminho para liberdade deveriam interessar às sociedades democráticas do presente, para que possamos ter um futuro possível de ser vivido em liberdade e em harmonia e no qual a poesia possa ser compreendida como um bem precioso que possamos cultivar constantemente em nossas vidas.

Por William Soares dos Santos - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e escritor.