Maio, 2021 - Edição 267

Cronista à beira-mar

A crônica, gênero tipicamente brasileiro, ao menos a que se escreve por aqui, chega primeiro aos leitores pelas páginas da imprensa, o que lhe dá, em maior ou menor grau, uma natureza jornalística. Assim foi com Rachel de Queiroz, na famosa “Última página” da revista O Cruzeiro; Carlos Drummond de Andrade, no Correio da Manhã e, depois, no Jornal do Brasil; Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, na revista Manchete, e tantos outros cuja prosa aliviava o peso do noticiário político e das análises econômicas. Há crônicas, porém, jornalísticas não apenas circunstancialmente, mas sobretudo pela semelhança que têm com a reportagem, pela intenção de informar os leitores, de trazer-lhes algo novo, o que possam desconhecer sobre pessoas e acontecimentos que lhes interessem. Textos como os de Ruy Castro e Sérgio Augusto, que não perdem a essência, o brilho e o sabor mesmo quando volumosos, a exemplo de O Anjo Pornográfico e Estrela Solitária, biografias de Ruy, ou Este Mundo É um Pandeiro e Aspenas do Ofício, ensaios de Sérgio.

Em Metrópole à Beira-mar (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), Ruy Castro, com a maestria de sempre, leva-nos ao Rio de Janeiro dos anos 1920, única cidade brasileira com mais de um milhão de habitantes – quase o dobro dos que viviam em São Paulo. Se o índice nacional de analfabetos chegava a 80%, entre os cariocas reduzia-se à metade. Nada menos do que 15 jornais disputavam leitores, entre eles o Jornal do Brasil, que, em 1917, tirava cinco edições diárias para cobrir o fim da Primeira Grande Guerra (“um jornalista só ficaria desempregado no Rio se sofresse de escorbuto ou beribéri”). Não surpreende, assim, a robustez do setor editorial: Em 1920, o Rio tinha cerca de quarenta livrarias, várias delas se desdobrando também em editora, tipografia, papelaria, banca de jornais e oficina de encadernação. Por muitas décadas, a principal foi a Garnier, na rua do Ouvidor, onde os escritores se reuniam em torno de Machado de Assis e sofriam por não estar em Paris. (...) Mas, em 1917, surgira uma concorrente invencível: a Grande Livraria e Editora Leite Ribeiro – a maior do país a partir do momento em que abrira as portas. (...) Seu prédio, no largo da Carioca, ocupava metade do quarteirão do Tabuleiro da Baiana. Tinha uma fachada de cem metros de comprimento, com trinta vitrines (...) O estoque, tomando dois andares e com estantes que iam até o teto, era estimado em 300 mil volumes – literatura, história, ciências, religiosos, didáticos, culinária, figurinos, além de jornais e revistas em pelo menos cinco línguas.

Ruy Castro tem razão: “O Rio era a única cidade que não tinha um ‘interior’. Todo o Brasil era o seu interior.” A “Cidade Maravilhosa”, como a chamara Coelho Netto em crônica de 1908, e cinco anos depois repetira a francesa Jane Catulle-Mendès, no livro de poemas La Ville Merveilleuse. Os graves e sucessivos erros dos eleitores, ao entregar o poder a péssimos governantes, acabaram por dar razão a outra estrangeira, a poetisa norte-americana Elisabeth Bishop, para quem o Rio não era uma cidade maravilhosa, mas um lugar maravilhoso para uma cidade. O resto dependerá do povo e dos políticos que lhe receberem os votos: Deus e a natureza fizeram a sua parte...

Tudo ia bem até que, em 1918, sobreveio a injustamente chamada gripe “Espanhola”, pois que o surgimento do vírus se deu, ao que parece, nos Estados Unidos – a Espanha levou a culpa, ao não esconder o diagnóstico dos primeiros casos. Uma verdadeira tragédia: em poucos meses, 20% da população mundial adoeceria, com um total de mortos ainda hoje incerto, entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas. Segundo o médico Miguel Couto, 600 mil cariocas foram infectados, mais de metade da população, com 12.700 mortes em dois meses, correspondentes a um terço dos óbitos em todo o Brasil.

Cem anos depois, a história se repete com a Covid-19, agravada pela incompetência de governantes, a estupidez de negacionistas e a crença despropositada dos que se deixam levar por charlatães e aproveitadores. Ruy Castro refresca a memória de quem costuma perdê-la, ao mostrar que os defensores de cloroquinas e ivermectinas não são sequer originais:
O alerta demorou a ser dado. Numa cultura em que o quinino era visto, até pelos médicos, como um santo remédio, o povo depositou suas esperanças em destronca-peitos, purgantes e preparados à base de alfazema, limão, coco, cebola, vinho do Porto, sal de azedas, cachaça e fumo de rolo – o que, naturalmente, não diminuiu o índice de mortalidade. Uma instituição fornecia canja de galinha contra a gripe. (...) No começo, o carioca ainda brincou, atribuindo a doença a uma arma secreta dos alemães, embutida nas salsichas. Mas, quando se descobriu que o número de mortes no Rio estava chegando a centenas por dia, viu-se que não havia motivo para rir.

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Capital da República e das letras nacionais, escritores que nela viviam ousavam fazer o que só depois se veria na Europa: o poema “A taça”, de HermesFontes, tinha a forma do objeto que o intitulava, exemplo da poesia visual que se associaria ao francês Apollinaire dez anos à frente. O ficcionista Adelino Magalhães praticava o “pensar tumultuoso”, nome com que denominava o monólogo interior, ou stream of conciousness, que mais tarde daria fama a Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf.

Famosos (e outros nem tanto) havia também por aqui, como o festejado Coelho Netto, que já era “quase o busto de si mesmo”, ou Ronald de Carvalho, que, por ouvir mais do que falar nas funções diplomáticas que exerceu, era “capaz de ficar em silêncio em várias línguas”, no conceito impiedoso de Agrippino Grieco. O jovem Théo-Filho publicara Dona Dolorosa, volume de contos que Ruy Castro considera “uma mistura de Kama Sutra com o catálogo da Drogaria Granado, uma espécie de ficção ginecológica”. Jackson de Figueiredo, líder católico que morreria afogado aos 37 anos na Barra da Tijuca, em 1928, merece reconhecimento por haver escrito o que parece aplicar-se a capitães de hoje:
O militar que se fez político, que é político, não tem, em regra, nenhuma superioridade sobre os demais políticos. Pelo contrário: no entrechoque das paixões que se fazem no novo meio, raro é o que guarda serenidade, raro o que não descamba para tiranete de maus bofes, raro o que não se faz, em pouco tempo, um inimigo público.

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Em 1922, o Rio engalana-se para sediar a grande exposição comemorativa do centenário da Independência. Delegações de 14 países – Portugal, Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Japão, Bélgica, Suécia, Noruega, Dinamarca, Tchecoslováquia, México, Argentina e Chile – movimentam embaixadas, lotam hotéis, enchem restaurantes. Uma ausência foi pesarosamente sentida, pela razão que a motivou:
Em Paris, o Conde d’Eu, viúvo da princesa Isabel, convidado especial do governo, zarpou com a nora e os netos no Massilia rumo ao Rio, para as comemorações. A República prestaria deferência à Monarquia. Mas, durante a viagem, à mesa do jantar, o conde tombou a cabeça branca no colo da nora e, sem um pio, expirou a bordo – sofrera um infarto fatal. Completou a viagem em câmara fria, foi embalsamado ao chegar e reembarcado em ataúde duplo para Paris.

Com previsão de encerrar-se no último dia do ano, prorrogou-se o evento até 23 de julho de 1923. Em dez meses de duração, recebeu mais de três milhões de visitantes de todo o Brasil – entre eles dois cearenses, que partiram de Fortaleza em uma jangada, e dois gaúchos, que foram de bicicleta. Realizaram-se 29 congressos científicos e técnicos, ciclos de debates, conferências e cursos. Finda a mostra, o Petit Trianon, pavilhão da França, foi doado à Academia Brasileira de Letras, com o que a Casa de Machado de Assis passou, enfim, a ter sede própria.

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O bicentenário da Independência coincidirá, em 2022, com a eleição que poderá ter significação histórica para a política brasileira. Menos de um mês depois, o povo irá às urnas para eleger o presidente da República, os governadores dos estados, deputados estaduais, deputados federais e um terço dos senadores. Convém, pois, esperar um pouco. A depender do bom uso que se fizer do voto, haverá, sim, razão para comemorar o 7 de Setembro. Caso contrário, seguiremos em mar revolto presos no porão da Nau dos Insensatos, sob o comando de quem jura que a Terra é plana, que não houve ditadura no Brasil e que Elvis não morreu. A esperança, embora sempre a dançar na corda bamba de sombrinha, não nos deixa pensar na hipótese de que Dom Pedro, esteja onde estiver, comente com sua espada: “Não foi por falta de um grito que se perdeu essa boiada...”Assunto para o cronista que, em 2122, escreva uma Metrópole à Beira-mar sobre o século que passou. Com o brilho, o talento e a leveza de Ruy Castro, espero.

Por Edmilson Caminha é membro da Academia de Letras do Brasil.