Abril, 2021 - Edição 266

Velhice

Sinto-me estranha e diferente. Meu corpo mudou ao ponto de me assentarem bem os vestidos frouxos. A tinta preta nos meus cabelos esconde uma brancura externa, enquanto a neve se espalha por dentro de mim. Precisaria de mais vitalidade, de mais esperança no futuro. Meus olhos estão baços de ausências. A cidade onde nasci coalhou-se de fantasmas que me veem caminhando nas ruas. Acenam-me das janelas de antigas casas que foram demolidas.

Recorro ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), nas páginas da Arte Retórica, no capítulo em que vai enumerando as características mais comuns dos velhos: a constatação de que sofremos desenganos, cometemos faltas, de que os negócios humanos são, quase sempre, malsucedidos; a cautela e a desconfiança a cada passo; o não ter certeza de nada e utilizar sempre a palavra “talvez”; o não desejar coisa grande ou extraordinária, mas, unicamente, o bastante para viver; a timidez, o resfriamento do ardor; o apego à vida, porque o desejo incide naquilo que nos falta e o que nos falta é o que mais desejamos; uma inclinação ao cinismo e à impaciência; o recordar o passado, recordar, recordar...

Que sabedoria a do velho discípulo de Platão. Criou o sistema da Lógica, da razão. Reconheço em mim alguns desses pontos. Vagarosa em minhas afeições, amo cada vez mais como se fosse oneroso pagar um preço tão alto por tanto amor incompreendido.
Não pensem que esta é uma lamúria. Tomar consciência de minha finitude e de minhas fraquezas é um dever da existência. Existo hoje nessa mulher de ossos saltados e pele com pequenas manchas marrons.

Só Hilda Hilst, que celebrava os riscos da poesia como uma espécie de religião assombrada, mergulhou com lucidez na problemática da velhice. Escreveu A Obscena Senhora D, uma novela de luto com doses de dramaturgia, numa prosa densa, lírica e radical. Aos sessenta anos, após a morte do marido, escondida num vão de escada, a Senhora D percebeu que estava absolutamente sozinha e desabafa: “...queria te falar desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe, mas é crua, é viva, o Tempo.”

Também ficou impregnada em mim a leitura do romance O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway (1899-1961). Atenção! O Velho e o Mar e não O Idoso e o Mar, O Homem na Terceira Idade e o Mar, esses títulos seriam ridículos. Encaremos a realidade. Santiago é o velho pescador de um vilarejo cubano. Ele sabe que deve remar até as profundezas do golfo, a fim de travar sua derradeira batalha, apenas com o céu e o mar por testemunha. Fisga um enorme peixe, maior que seu barco. Testa seus limites num embate feroz. Cheiro de alcatrão, de sangue, de náusea e de peixe se misturam. Lança o arpão no corpo do peixe que se dilata em espasmos. Que duro conflito! A capacidade do espírito humano para enfrentar e vencer dificuldades. Afinal, “um homem pode ser destruído, mas não derrotado”.

Tenho um pouco da melancolia e do enfado da Senhora D e a vontade de lutar até o fim, como o velho pescador singrando pelas ondulações do mar. Desejo de ainda dar frutos e flores, como uma árvore desfolhada no outono. Apesar do meu desgaste, há uma luz que me renova os galhos. Uma firmeza em minhas raízes que suportam tempestades. Como se eu tivesse sido plantada com segurança num mundo inseguro.
Recuso-me a partir assim. As horas são difíceis, há sofrimentos que asfixiam por todo lado. Mas ainda me restam forças, apetite... e a noite está linda.

Por Raquel Naveira - membro da Academia Sul-matogrossense de Letras.