Abril, 2021 - Edição 266

Niskier, a navegação no passado com olhos postos no futuro

Caminhamos para um outro mundo muito diferente e que nascerá após o rasto da tragédia. Será melhor ou pior conforme o nosso empenhamento. Dependerá das escolhas e das apostas que hoje fazemos ou não fazemos.
O tempo que estamos a viver permite recuperar lembranças do passado mais remoto ou do passado quase presente, formular advertências e construir projetos com olhos postos no futuro. Eis o que se verifica no último livro de Arnaldo Niskier, Memórias da Quarentena. Estamos perante um conjunto de textos escritos aos 85 anos e que integram muitos testemunhos e juízos críticos que correspondem a décadas de vida vivida e de experiência confrontada com várias gerações – a de Arnaldo Niskier, a dos que o antecederam e, pelo menos, a das três gerações seguintes.
É uma abordagem das questões primordiais da educação, da ciência, da tecnologia e da inovação. É um momento que possibilita refletir a obra de Sócrates, de Platão e de Aristóteles. É uma oportunidade para reconsiderar os contributos de Descartes, de Kant e de Voltaire. É uma abertura para reviver o magistério, tão distante e tão próximo, de Maimonides e de Spinoza. É, ainda, uma ocasião para avaliar as interpretações e controvérsias suscitadas por Kierkegaard, por Wittgenstein e por Walter Benjamim. Entre todas estas aproximações destaca-se para Arnaldo Niskier a figura emblemática de John Dewey (1859- 1952). Enquanto ocupou a cátedra das mais prestigiosas universidades dos Estados Unidas, rompeu com metodologias clássicas, abriu novos horizontes. Procurou a conciliação da teoria com a prática. Estabeleceu as bases de uma nova escola. “Estudar a experiência é – para John Dewey – estudar a educação”.
Professor titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Arnaldo Niskier desempenhou, por quatro vezes, as funções de secretário de Estado nas áreas da Educação e da Cultura, da Ciência e da Tecnologia. Fundou cerca de uma centena de escolas e uma extensa rede de bibliotecas. Estimulou a leitura e a difusão do livro. Instituiu concursos e festivais de literatura. Organizou debates sobre as novas tecnologias. Ao proceder à requalificação do Rio de Janeiro como capital da cultura do Brasil, implantou o Planetário da Gávea; e um Museu do Automóvel, também, no Rio, ao lado do Planetário.

Aposta pioneira

Através das Memórias da Quarentena ficamos a conhecer a sua participação na redação dos textos inaugurais da legislação de Darcy Ribeiro a propósito do ensino à distancia. Era, na altura, membro do Conselho Nacional de Educação. Foi uma aposta pioneira no Brasil. Assinala as origens do ensino a distância.
É certo que, apesar de tantos anos decorridos, nem todos os alunos possuem internet, nem todos os professores estão preparados para o desafio. Em face dos condicionalismos existentes, as Secretarias de Educação tiveram de adotar as soluções pontuais mais adequadas, recorrendo às lições de John Dewey ao preconizar concretização pragmática do “aprender fazendo” (“learning by doing”).
“As aulas transmitidas” – observa Arnaldo Niskier – “por um sistema híbrido de televisão, via salas virtuais do Google Classroom, material impresso e chips de internet, distribuídos aos alunos, inserem-se nas atividades emergenciais com o emprego de plataforma digital”.
O ensino presencial não pode ser eliminado. Mas o ensino a distância ganhou credibilidade durante esta crise. Entrou dentro das nossas casas. A formação on-line revelou a partilha, até então, impraticável de numerosos recursos. Aboliu restrições geográficas, despesas nas deslocações de professores e alunos. Reduziu os custos de manutenção de instalações. Facilitou o acesso direto a formulários de inscrição e digitalização de materiais didáticos. Permitiu gravar as aulas para facilmente recapitular lições. Tudo isto são aquisições incontroversas. O ensino a distância não pode, contudo, ser pretexto para rebaixar o nível de ensino. “Se isso acontecesse” – pondera Arnaldo Niskier – “contabilizaríamos enormes prejuízos”. Tanto maiores quanto há 20 metas prioritárias do Ministério da Educação e Cultura, que engloba a educação básica em 5.500 municípios. O Brasil, no setor da Educação, tem estado – refere Arnaldo Niskier – atrás dos 50 países melhores classificados. Aponta, como exemplo, a Finlândia, a Coreia do Sul, o Canadá e Taiwan. “Realizamos apenas no Brasil 13,4% do pretendido. É muito pouco”, concluiu Arnaldo Niskier.

ABL, o rosto da modernidade

Remetem-nos, igualmente, as Memórias da Quarentena, para a Academia Brasileira de Letras. Admitido, em 1984, Arnaldo Niskier foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, em 1998. Exerceu, na transição do século XX para o século XXI, um mandato de tal modo relevante que o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony afirmou que a história centenária da Academia Brasileira de Letras se caracteriza por “dois períodos: antes e depois de Niskier. Trouxe, para a Academia Brasileira de Letras, o seu know-how de grande executivo. Impôs a modernidade”. Devem-se-lhe, por exemplo, a instalação do Banco de Dados; catalogou mais de 12 mil escritores da língua portuguesa; instalou e inaugurou o Teatro Magalhães Júnior e a fundação da Galeria Manuel Bandeira.

Língua portuguesa

Também, na Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier aprendeu “a amar ainda mais a língua portuguesa”. A situação atual da língua portuguesa exige uma conjugação de tarefas inadiáveis. Acentuam-se sinais, de adulteração e degradação. Alguns exemplos sintomáticos que Arnaldo Niskier tem mencionado: a difusão de telenovelas que privilegiam “o linguajar chulo e a utilização frenética de palavrões”; “um excesso de oferta eletrônica descontrolada”; numerosas teses universitárias escritas em inglês. Desde a economia, a gestão, a medicina e outras áreas técnicas e científicas.
Estas e outras deturpações provocam danos irreparáveis. Arnaldo Niskier tem alertado os dirigentes políticos, os responsáveis das universidades, das escolas de todos os graus e os intelectuais que pontificam nas Academias e outras instituições. Requerem uma intervenção frontal para honrar um legado cultural e cívico.
Todavia, os contatos a estabelecer não se podem resumir à polêmica do acordo ortográfico (que é, sem dúvida, importante), mas inserem-se numa diversificada política de cooperação, em vários domínios, abrangendo todos os povos de língua portuguesa e para além do próprio espaço da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. O presente e futuro da língua portuguesa, estou a pensar na Guiné Equatorial – reveste-se de aspectos muito problemáticos.
Para defender e projetar a identidade e a coesão, a língua portuguesa, uma das cinco mais representativas do mundo, com mais de 300 milhões de falantes, torna-se fundamental e prioritário – e Arnaldo Niskier não se cansa em insistir na urgência do reconhecimento oficial, como língua de trabalho, à semelhança do inglês, nos grandes organismos internacionais como as Nações Unidas. Temos participado (assim o confirma na página 125 das Memórias da Quarentena), em realizações efetuadas nas Academias e nas intervenções em colunas de opinião, em jornais e revistas e outros órgãos de comunicação. Tem sido um combate para salientar as virtualidades e os desvios da língua portuguesa como língua de expressão e de cultura, como língua de trabalho em organismos internacionais, como idioma impulsionador para o diálogo e para o encontro de povos e civilizações.

Futuro, as interrogações

Contudo, um dos temas dominantes que percorrem as Memórias da Quarentena reside na catástrofe que surgiu no último ano; a pandemia que nasceu na cidade de Wuhan, na China, disseminou-se para o resto do mundo e tem desencadeado entre os humanos uma batalha feroz, cruel, arrasadora.
Intensificou-se, de forma vertiginosa, a insegurança, o pânico, a ausência de solidez e de perseverança para erradicar um inimigo comum e indivisível. Sucederam-se outros vírus. Generalizou-se o terror nas grandes cidades e nas aldeias mais longínquas que dir-se-iam à margem da civilização. Registou-se, até agora, um morticínio que já excedeu o número de vítimas da II Guerra Mundial.
Até quando vamos suportar este flagelo? Qual o ponto da situação? Estamos a viver uma conjuntura política de grande complexidade marcada por dois extremos: o ressurgimento dos nacionalismos populistas que conduzem aos regimes totalitários e a ambição de aprofundar a cooperação global, em liberdade e democracia, para garantir o pluralismo de opinião, a estabilidade e a confiança.
Encontram-se encerradas as igrejas, as sinagogas e outros espaços de culto. A Bíblia, o Alcorão, os Vedas e outros livros sagrados iluminam a fé dos que creem num poder sobrenatural que preside aos labirintos da vida e aos mistérios da morte. Mas há os que só esperam e confiam na eficácia das vacinas, na criação de anticorpos e outros prodígios da ciência que têm conseguido ampliar a expectativa da média de vida que, nos últimos dois séculos, passou dos 40 para os 70 anos e já se estendeu para além dos 80 anos.
A adversidade é e será – como sustentavam filósofos da antiga Grécia – a melhor fonte de virtude a energia vital que incentiva as lutas pelas causas mais nobres? É mais do que evidente que as incertezas geram ansiedade crescente e as maiores preocupações. Todavia, Yuval Noah Harari, um dos pensadores israelitas de renome universal, o consagrado autor da obra Sapiens, Uma Breve História da Humanidade entende que é necessário investir nos investigadores da ciência, no equipamento dos laboratórios, na construção e remodelação de hospitais, na formação de médicos, de enfermeiros e de assistentes operacionais, na mobilização de todos os recursos capazes de proteger a vida humana. “Os nossos super-heróis” – repete com frequência Yuval Noah Harari – são os cientistas nos laboratórios”. Serão eles que vão neutralizar a irradiação do Covid-19 e de outros vírus contagiantes, espalhados à nossa volta?
As interrogações que persistem, multiplicam-se e nunca se afastam quando tentamos indagar os enigmas do futuro? Arnaldo Niskier é crente. Sou agnóstico. Mas ambos podemos afirmar que, se for nos próximos cinco ou seis anos, devemos com certeza estar mais preparados.
Se for daqui a vinte anos, muitos de nós já não pertenceremos ao número dos vivos e, entre todos aqueles que nos sobreviverem, já ninguém se vai lembrar. As lágrimas de fogo, as inquietações e os suores dilacerantes que trespassam a nossa realidade cotidiana ficarão sepultados na história das nossas vidas. Um outro mundo nascerá após o rasto da tragédia. Será diferente. Será melhor ou pior conforme o nosso empenhamento. Dependerá das escolhas e das apostas que hoje fazemos ou que não fazemos.

Por António Valdemar - Jornalista, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras e sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa.