Abril, 2021 - Edição 266

Figurinhas e figurinhas

Eu nem despertara e a mesadinha já estava sobre a estante. Era de lei aos sábados. Havia sempre a advertência do meu pai: “não gaste tudo, economiza.” Mas quando dizia isso, eu já estava pronto – roupa trocada e café tomado – para a gastança. Até botar o pé na rua, precisava vencer seis andares de escada. Não por falta de elevador, mas de coragem. Desde que experimentara a desgraça de ficar preso em um, com parede em reboco descortinada à frente, só o usava acompanhado.

Pois bem, de volta aos meus caraminguás. Não vem de hoje minha obsessão pelo “tiro certo”. É como defino o mesmo prato pedido há 15 anos num restaurante. Sou inflexível nisso desde os tempos da mesada, que tinha sempre o mesmo destino – o caixa da banca do Beto – e a mesma sacola – um Jornal dos Sports, cinco pacotes de figurinhas e um Prestígio. O chocolate, nem mal saía da banca, já o consumia em três abocanhadas. O “rosinha”, apelido do jornal, exigia mais cautela. Ia para a escada do bloco, sentava num degrau largo e lia as partes de interesse. Depois, largava-o lá, num nível qualquer, ermo, como se a escada tivesse parido aquele menino que vestia rosa. Tinha – sei lá por quê – vergonha de entrar em casa de jornal sob o braço – num cosplay do meu pai.

Mas é das figurinhas, hoje, este espaço de conversa. Constituíam-se, em minha infância, artigo de raro fascínio. Para abri-las, eu obedecia um ritual quase místico. De largada, unia os cinco pacotinhos, elevava-os à ponta do nariz e aspirava até o cheiro do papel da embalagem – meio manteiga, meio crepom – penetrar pelas narinas. Depois, deslizava polegar e indicador pela superfície, identificando a posição interna dos cromos. Reconhecia assim o território e diminuía o risco de violar as figurinhas. Só então fazia um rasgo mínimo, que era a demarcação para a patrola, no caso a minha mão, passar abrindo tudo. Três etapas, portanto: reconhecer, delimitar e esfarrapar.

Outro hábito incomum entre as crianças vinha em seguida. Retiradas as figurinhas da embalagem, eu não as conferia de imediato. Isto era etapa posterior, quando todas compunham um bolo único. Dali tomavam um dos destinos possíveis: a fixação no álbum ou o monte das disponíveis para escambo. Figurinha colada valia mais que chifre de rinoceronte. Até acontecia de alguém não ter uma fixada e o outro aceitar a troca, mas, à mesa de negociação, nunca a conversa começava abaixo de 30 por uma. O preço alto levava em conta não só a raridade do cromo como o risco de rasgos e perfurações no álbum durante a extração.

Um dia desfiz uma amizade silenciosamente. Acompanhado de um amigo, eu abria pacotinhos. Ele quis ver o álbum – talvez enfadado do meu lento processo com as figurinhas ou, sabe-se lá, com o mal já premeditado. Não me opus. Mesmo concentrado cá, notei-o com comportamento suspeito lá. Pelo rabo dos olhos, apreendi o que se passava: ele encobrira a mão com uma página do livreto, enquanto cavoucava uma figurinha colada em outra. Não gritei “pega ladrão”, nem lhe montei ou esmurrei. Deixei o furto se consumar, levantando-me daquele meio-fio – palco clássico de consolidação de amizades – arrasado e desfalcado de um amigo e uma figurinha. Mas a verdade é que uma figurinha era nada perto do que fiz passar outro garoto, o Sidartha. Ele era um tanto remansoso no pensar, falar e agir. Com impiedade, inclusive nas adjetivações, tratávamos esse jeito dele. Quando Sidartha apareceu na escola quase encoberto por uma montanha de repetidas, ninguém precisou combinar nada, só se entreolhar. Um caprichado “bate-pavão” eclodiria no meio do pátio do colégio. Fui o dono do tapa na mão de Sidartha que fez figurinhas voarem pelos ares como confetes de Carnaval.

Por um tempo me penitenciei pelo ato. Dócil, Sidartha não estava na chuva para se molhar. Nós, sim. Éramos uns doze garotos, todo dia alternando diabruras. Um dia de padecedor, sofredor; outro de canalha e sacana. A vítima de hoje era o algoz de amanhã. Sidartha não integrava esse círculo. Era injusto atacá-lo, como fiz, porque ele não faria valer seu direito ao dia de caçador. Custei a me perdoar.

Tive com as figurinhas uma relação solene. Ao grudá-las, tentava ser como os takumis – artesãos japoneses mestres em precisão. Aborrecia-me quando fracassava e ruminava a falha sempre que alguém me perguntava, ao folhear o álbum, se eu estava com Parkinson. Também não as admitia sujas ou amassadas – mesmo as repetidas, que fatalmente logo repousariam em outras mãos. Foram elas ainda elo afetivo. Quantas não foram as vezes em que, surpreendido com a visita do meu avô, chamava-o para ir à banca comigo – sabedor de que sairia de lá com as mãos cheias. Certa vez, dei a ele um pacotinho para que abrisse. De repente, figurinha ao alto, começou a cantar: “Vence o Fluminense com o verde da esperança. Pois quem espera sempre alcança.” Ele havia tirado o escudo do seu tricolor.

Relembro essas histórias porque hoje um amigo me propôs uma troca de figurinhas. Resolvemos tudo em trinta segundos, à distância, por WhatsApp mesmo. Sem direito a farejada no pacotinho, “bate-pavão” e meio-fio. Tudo frívolo, bem frívolo.

Por Anderson Olivieri - Jornalista e escritor.