Abril, 2021 - Edição 266

Entrevista - João Candido Portinari

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura

Portinari e o “Guerra e Paz”

Arnaldo Niskier: Hoje vamos entrevistar o filho único do grande pintor brasileiro Candido Portinari. João Candido Portinari é formado em matemática na PUC, tem o MIT e uma série de títulos importantíssimos, mas o principal, a meu ver, é que cuida do patrimônio cultural do seu pai, Candido Portinari. Qual foi a repercussão do painel Guerra e Paz apresentado aqui no Rio de Janeiro?

João Candido Portinari: A repercussão foi extraordinária e ultrapassou nossas fronteiras. Vou citar um exemplo apenas. Todo mundo conhece mais ainda agora, nesses tempos de pandemia, uma das revistas científicas de pesquisa médica mais importantes do mundo, The Lancet. Essa revista lançou um número especial para marcar os 10 anos da tragédia das Torres Gêmeas em Nova Iorque. Então, em 2011, que foi um ano depois do projeto Guerra e Paz começar, ao mostrarmos os painéis no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que foi uma emoção enorme, eles fizeram esse número especial em que a capa e contracapa eram “Guerra e Paz” e o editorial se referia à importância da ONU. Fiquei muito orgulhoso, porque imaginei que milhões de consultórios médicos pelo mundo todo, nas salas de espera, têm aquela revista ali na mesa. Quanta gente não viu ali o Brasil? Inclusive eles fazem menção à missão de Portinari, que é naturalmente transformar guerra em paz.

Arnaldo Niskier: Quem teve a ideia de convocar o Portinari para essa homenagem à obra “Guerra e Paz”?

João Candido Portinari:Começou com o primeiro- -secretário geral da ONU, que era um norueguês chamado Trygve Lie. Ele lançou um apelo a todas as nações-membros para que cada uma doasse uma obra de arte para a nova sede da ONU recém-construída em Nova Iorque, uma obra de arte que pudesse testemunhar a cultura e a arte do país. Então, cada país foi escolhendo o seu artista e o Brasil escolheu Portinari e deu a ele um elenco de temas. Entre esses temas, estava Guerra e Paz, que é o tema de toda vida dele, a questão da militância pela paz mundial, que aliás lhe deu a medalha de ouro internacional da paz, isso pouca gente sabe.

Arnaldo Niskier: Tem um pequeno vídeo sobre Portinari na China. Tenho curiosidade de conhecer isso. Você tem como mostrar?

João Candido Portinari: Isso foi uma grande surpresa para mim e bem recente. A Myrian Dauelsberg e o Steffen, filho dela, da Dell’Arte, empresa de produção cultural, me mandaram uma entrevista que fizeram com o Balé Nacional da China, que é uma coisa monumental, como se fosse a bandeira nacional. Nessa entrevista, a diretora artística do Balé Nacional da China fala sobre Portinari.

Arnaldo Niskier: Você pôde acompanhar o trabalho do Portinari como pintor?

João Candido Portinari: Desde que nasci, porque ele era um pai muito apegado, muito afetuoso. Vejo, nas fotos que tenho daquela época, estou sempre ou nas costas dele ou no colo ou nos ombros. Tenho várias fotos desses momentos, desde o meu nascimento. Até os 18 anos, assisti diariamente. Ele falava para minha mãe assim: “Não me chame para almoçar se a comida não estiver na mesa.” Ele não aguentava ficar aqueles minutos sem pintar, era uma coisa de pintar da manhã à noite. Enquanto houvesse luz natural, ele estava pintando.

Arnaldo Niskier: Você tem ideia de quantos quadros pintou o seu pai?

João Candido Portinari:Claro, nesses 42 anos de projeto Portinari... No início, não tínhamos um registro do paradeiro da maioria das obras. Entrevistando as pessoas que eram próximas a ele, chegamos, em média, a uma obra a cada três dias, durante 40 anos. Isso representa, quando se faz o cálculo, mais ou menos 5 mil obras. Temos agora já levantadas 5.400 obras. Estou falando de gravuras, desenhos, pinturas, mural.

Arnaldo Niskier: Você tem em casa algumas dessasobras ou vendeu tudo?

João Candido Portinari: Tenho sim. Tive que vender muita coisa para que o projeto Portinari não paralisasse. Você sabe como as coisas são difíceis, não só no Brasil. Em qualquer lugar do mundo, esses projetos culturais sofrem muitos baques, muitos percalços. Então, tive que vender muita coisa, mas, apesar disso, ainda conservei alguma coisa. Ele separava o que ele chamou coleção João Candido Portinari, o que é outra demonstração da ternura dele de pai.

Arnaldo Niskier: Ele sabia que estava deixando isso para você.

João Candido Portinari:E sabia que isso poderia ser um suporte financeiro para nossa vida. Não fez isso só comigo não, fez com os irmãos também. Ele tinha 11 irmãos, a tia Olga, por exemplo, que foi a última a falecer (ela faleceu quando estava prestes a completar 100 anos), posou para inúmeros quadros, posou com Nossa Senhora lá na Capelinha de Brodowski. Tem um depoimento em que ela fala que ele disse que ela não iria ter preocupações materiais na vida, porque ele estava separando para ela obras que ele ia progressivamente dando de presente.

Arnaldo Niskier: Você fala em Capelinha, lembro de religião. Portinari era um homem de esquerda.

João Candido Portinari: Um fato muito interessante, porque um dos maiores pensadores católicos brasileiros foi o Dr. Alceu Amoroso Lima. Quando a Fundação Roberto Marinho se mudou lá para a Casa do Bispo, fizemos uma exposição, Portinari Arte Sacra, e foi publicado um livro com a arte sacra de Portinari, que é bem menos conhecida. O Dr. Alceu levantou essa questão e disse assim: “Como um homem de esquerda, como Portinari, podia pintar pintura sacra com tanto fervor, quase com misticismo?” Aliás, ele não foi o único que levantou isso, muitas outras pessoas. A Dinah Silveira de Queiroz e muitas outras pessoas se perguntaram e o Dr. Alceu disse que só resolveu esse paradoxo quando visitou a família de Portinari lá em Brodowski. Aquelas imigrantes italianas pobres, mas muito católicas, eram famílias matriarcais e ele disse assim: “No contato com aquela gente simples e boa como o pãozinho que sai quentinho do forno, entendi que não havia paradoxo algum.” Aí ele põe ponto e diz assim: “Portinari, pintor cristão.” Acho lindo esse texto.

Arnaldo Niskier: E a presença do Portinari em Israel?

João Candido Portinari: Isso foi uma coisa também extraordinária, porque foi na época em que ele fez Guerra e Paz. Ele foi o primeiro artista não judeu a ser convidado a expor em Israel, pelo próprio presidente do Estado de Israel, que era Ben-Zvi, ele, inclusive, foi buscá-lo no aeroporto (imagine que prestígio Israel deu a ele) e fez uma exposição itinerante. Eu tinha 17 anos, fiquei fascinado e foi uma coisa transformadora, tanto na vida dele quanto na minha, porque Israel estava se formando naquele momento, estavam irrigando o deserto, fiquei num kibutz chamado Bror Chail.

Arnaldo Niskier: Kibutz brasileiro.

João Candido Portinari: Quando voltei, eu que era um garoto de praia (morávamos no Leme), fechava a janela para não ver a praia para estudar. Passei a estudar loucamente, porque ele também estava muito desesperançoso com os rumos que a pintura estava tomando do abstracionismo, de você não ter mais a figura humana, a mensagem que, para ele, era crucial, a mensagem ética e humanista que ele passava na sua pintura. Aquilo o abateu profundamente e o contato com Israel... Tem até um artigo de um crítico italiano que fala que Portinari renasce em Israel e elabora essa questão. De fato, ele fez com Israel, numa escala menor, é claro, aquilo que havia feito com o Brasil. Pintou os tipos humanos, pintou Shabat, pintou crianças com aquelas tranças do lado...

Arnaldo Niskier: Pelo que consta, ele não fez essas pinturas em Israel, ele foi para a Itália para se inspirar mais e melhor. Por que isso?

João Candido Portinari: Na verdade, fez em Israel sim, ele tinha um caderno de esboços em que ia anotando tudo. Aquelas paisagens bíblicas, por exemplo, Lago de Tiberíades, o Monte Tabor, a mulher de Ló que virou sal, tudo aquilo ele absorveu. Na Itália, o livro foi publicado, porque tinha lá uma editora que era de um grande amigo dele, a Editora Ilte, e depois, no Brasil, o Abraham Koogan editou aqui. Uma coisa curiosa é que a comunidade israelita não conhece tanto assim esses livros...

Arnaldo Niskier: Tem que ser relançados.

João Candido Portinari: Estou pensando em relançar, porque é tão belo, ele fez o grande retrato de uma nação com todos os aspectos.

Arnaldo Niskier: Hoje, o Brasil está recorrendo a Israel para ver se ajuda na solução dos problemas da pandemia.

João Candido Portinari: O Instituto Weizmann estava começando naquela época.

Arnaldo Niskier: É, conheço muito bem, o Instituto notável de grandes cientistas. Você particularmente, apesar de ter um pai tão famoso e tão ligado à arte, preferiu lidar com a matemática, ciência dos números, ciência do raciocínio. Foi diretor do Departamento de Matemática da Pontifícia Universidade Católica, estudou Matemática dentro e fora do país. De onde vem essa paixão pela ciência dos números?

João Candido Portinari: Tenho, inclusive, uma foto em que estou tentando pintar na frente dele. Ele está me observando, eu era pequeno, devia ter 4 ou 5 anos, estou com um pincel na mão, no cavalete dele e ele me olhando. Houve um momento em que talvez tenha pensado que pudesse também ser pintor. Como veio de origem muito humilde, ele era muito prático, dizia para mim assim: “João, você pode ser um engenheiro mais ou menos, um advogado mais ou menos, um médico mais ou menos, mas se você for um pintor mais ou menos vai morrer de fome.”

Arnaldo Niskier: Isso é verdade. Tinha que ser excepcional que nem ele.

João Candido Portinari: Por outro lado, tinha uma coisa que me incomodava muito, você vai entender logo, era que em qualquer lugar que estivesse, se as pessoas fossem se apresentar umas às outras, a pessoa dizia assim: “Olha, esse aqui é o Arnaldo, esse é o Pedro, esse é o José, esse é o Osvaldo, esse é o filho do Portinari.” Aquilo foi pesando muito para mim. Ele ocupava um espaço imenso, naquela época, no cenário brasileiro, e aquilo me incomodou a tal ponto que acabei saindo de casa aos 18 anos e fui estudar na França. Agora, por que Matemática? Sempre tive paixão por Matemática, estudei no colégio Andrews, tive um professor maravilhoso, professor Ramalho Novo, e depois tive um grande mentor que foi o Pierre Lucie. Ele era meu tio, foi casado com uma irmã de minha mãe, grande professor de Matemática e de Física, inclusive fundou o curso de vestibular mais importante da época. Dava aula também no COS, que era do Henrique Saules, eram professores do Santo Inácio... O primeiro emprego que tive, primeiro dinheirinho que ganhei, foi como assistente do professor de Geometria, no PH, que era o professor Duílio Nogueira. Então o Pierre se tornou uma espécie de alternativa para mim e me convenceu que deveria estudar Matemática e que o único lugar que se podia estudar Matemática era na França e não na Sorbonne. Ele tinha pavor da Sorbonne, tinha que ser nos Liceus, que eles chamavam de Grandes Écoles, que era, na verdade, a escola politécnica, normal e superior, as grandes escolas de engenharia. Então, fui para Paris, fiquei como interno, era um regime de campo de concentração, fiquei interno no Liceu, o Liceu Louis-le-Grand, onde estudaram Voltaire e Poincaré. Esse Liceu, que vem dos tempos de Napoleão, tinha uma disciplina de ferro, não podíamos sair. Você prestava um concurso nacional para entrar nessas grandes escolas e entrei na escola de telecomunicações e fui fazer o doutorado no MIT, em engenharia elétrica. Tive a sorte de ter um orientador lá que era um físico, matemático fantástico e acabei, então, indo para Matemática aplicada à Física. Estava há 10 anos fora do Brasil, quando recebo o convite da PUC para voltar e ajudar a criar o Departamento de Matemática que não existia ainda. Voltei.

Arnaldo Niskier: Matemática é muito ligada à Física. Você se especializou numa coisa muito bonita sem deixar de amar a obra do seu pai, que sempre cuidou com muito carinho.

João Candido Portinari: Teve essa volta. Quando fiz 40 anos, escrevi uma carta póstuma em que dizia que queria trabalhar para que a obra dele pudesse ser acessível a todos, quer dizer, não só a obra pictórica. Tem uma diferença quando você pega, por exemplo, uma obra como a do Kandinsky, que é um artista abstrato, ela pode ser belíssima, mas o que ele está propondo ali são cores, formas, volumes, enquanto a obra de Portinari é profundamente comprometida com o humano, com o social, com valores.

Arnaldo Niskier: E assim ele se consagrou.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura