Abril, 2021 - Edição 266

Convivência na diversidade

À politização exacerbada seguiu-se a polarização radicalizada. É o que vivemos hoje, quando o fato de frequentarmos de nossas poltronas as redes sociais, espaços de convivência que já pouco têm a ver com as praças helênicas e os cafés franceses, favorece o entrechoque de ideias e posições sem a adoção de maiores cuidados, até mesmo argumentativos. Já não se cultiva a politesse, já não se parece usar a gentileza como regra de convivência. Amizades se desfazem, parentescos estremecem, enquanto a profusão de postagens vai passando diariamente pelas nossas vistas. Acontece que, tirando as redes sociais, uma tal situação não é exclusividade do tempo em que vivemos.

Voltemos aos anos finais do século XIX, tempos iniciais da República no Brasil. Tenhamos em conta um meio, o literário, florescendo à volta da rua do Ouvidor – das redações, livrarias, cafés e restaurantes que lhe formavam o entorno. Aí se moviam personagens ainda hoje acatados, lidos, estudados. Todos gente de opinião (que pela sua atuação nas letras ajudavam a formar), e partidários de ambos os lados em que se dividia a política contemporânea. Acabaram reunidos, à volta de um outro que dentre eles sobressaía não só pela produção literária, mas pela distinção da personalidade.

A ideia original foi de Medeiros e Albuquerque, na época diretor de instrução do Ministério do Interior. Ele, mais Aristides Lobo e Lúcio de Mendonça debateram a criação de uma Academia de Letras, a incluir no orçamento de Estado, exatamente na virada do regime. Foi a discussão sobre a propriedade da inclusão de uma agremiação, naqueles moldes no orçamento, o que impediu a criação da Academia Brasileira de Letras juntamente com a República. Como se sabe, somente anos depois a ideia tomaria forma, por inciativa do mesmo Lúcio de Mendonça, já então ministro do Supremo Tribunal Federal.

Lúcio de Mendonça foi o executor da ideia da criação da Academia. É o que diria depois o próprio Medeiros e Albuquerque: “Positivamente, sem Lúcio, nada se teria feito. Pode dizer-se que foi ele quem fez tudo. Nem mesmo Machado de Assis, que não era homem de ação, conseguiria coisa alguma” (MENDONÇA, Lúcio. Primeiras notícias da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro: ABL, 1997).

O preenchimento inicial das cadeiras da ABL dá margem a muito mais considerações, e não vem ao caso aqui. Ao caso aqui vem o fato de, fundada a agremiação, ter essa reunido sob seu teto personagens tão díspares, numa época politicamente tão conturbada. O que se deve à ascendência sobre eles de Machado de Assis. Por ocasião do discurso inaugural da casa, a 20 de julho de 1897, Machado, o primeiro presidente, assinalava que “o vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária”. O que de fato se fez. Esse é o propósito perseguido desde então: o de unidade (ao menos literária) na diversidade – política, inclusive.

Pelo que as academias de letras e demais associações literárias (e elas continuam surgindo em todos os recantos do país) se prestam também ao papel de aparar arestas ao congregar opiniões díspares de seus membros e associados. Continuam, por isso, a constituir espaço privilegiado de convivência, cujo exemplo, ensinando-nos algo sobre tão difícil arte, é de todo bem- -vindo nos tempos atuais.

Por Getúlio Marcos Pereira Neves - Membro do PEN Clube do Brasil..